Os patrões chamam-lhes “trabalhadores eventuais”. Mas
contratam-nos ao dia para cobrir eventualidades que duram décadas.
“Todos os dias somos escalados por turno. Cada turno que
efetuamos é um contrato novo.” “O primeiro turno diário corresponde a oito
horas de trabalho, o segundo corresponde a sete. Muitas vezes, Ricardo faz
ambos no mesmo dia.”
A situação de Ricardo, relatada pela TSF em dias de greve
dos estivadores precários do Porto de Setúbal, é igual à de 90% dos seus
colegas. Só 10% dos estivadores deste porto são do quadro; os restantes são
chamados por SMS na véspera ou no próprio dia por uma das empresas de trabalho
temporário que presta serviços na Mitrena, a marginal industrial de Setúbal.
Como quase sempre, a desculpa patronal para não integrar
estes trabalhadores é a natureza da necessidade que representam. Chamam-lhes
“trabalhadores eventuais”, mas contratam-nos ao dia para cobrir eventualidades
que duram décadas. Oferecem-lhes contratos eventuais porque “não correspondem a
necessidades permanentes”, mas a sua greve parou o porto e há 6 mil carros da
Autoeuropa que não saem da fábrica por causa disso.
Estes 91 trabalhadores são essenciais ao funcionamento do
Porto de Setúbal. É às costas da sua precariedade que o tão falado dinamismo
industrial da península de Setúbal é carregado para os navios das preciosas exportações.
“Ou mantemos os privilégios de alguns ou mantemos o emprego a milhares”, diria
a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, em 2016, a propósito de outra
greve dos estivadores.
A única coisa que estes trabalhadores exigem é um salário
certo no final de cada mês de trabalho. Depois de décadas a assinar contratos
ao turno, pode até parecer um privilégio, mas não é. Por isso é que, quando a
empresa tentou assinar contrato com apenas menos de metade dos estivadores
precários, Ricardo e os colegas entraram em greve.
Houve quem dissesse que essa greve era ilegal ou desleal. É
inédito exigir pré-aviso de greve a trabalhadores que nunca tiveram pré-aviso
de trabalho. São os contornos sarcásticos de um patrão demasiado habituado a
ter a faca e o queijo na mão.
Estes não são os únicos precários da Mitrena. Há milhares de
vidas que se governam mais pela chegada dos navios do que pelo nascer do sol.
Há milhares de vidas que se repetem ao ritmo dos turnos, num eterno “deixa ver
se há trabalho hoje”.
Basta passar uma manhã pela Lisnave, histórico estaleiro
naval que já pôs e tirou comida da boca de milhares de famílias no distrito de
Setúbal. Aí, a modernidade foi muitas vezes o bode expiatório para a
substituição progressiva de trabalhadores qualificados e bem pagos por
precários (não raras vezes trabalhadores imigrantes).
A Lisnave tem cerca de 500 trabalhadores efetivos, mas nos
estaleiros chegam a estar 3 mil. A subcontratação em cadeia através de empresas
de trabalho temporário é o que faz centenas de trabalhadores madrugarem à
porta, “deixa ver se há trabalho”. Se chegar um navio será preciso contratar
umas dezenas nem que seja para montar andaimes, boa imagem para quem anda
sempre pendurado na vida.
O setor naval é paradigmático na análise dos conflitos
laborais que atingiram em força o séc. xxi. Extremamente vulnerável à
selvajaria económica da globalização, o impulso para os ganhos de
competitividade não pode abdicar da qualidade da mão-de-obra. O resultado é o
ataque à negociação coletiva dos efetivos e a precariedade extrema de todos os
outros.
Em 1946, Soeiro Pereira Gomes descreveu as praças de jorna:
“um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou
os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores,
oferecem a sua força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o
salário ou jorna, que é a paga de um dia de trabalho.”
A greve dos estivadores de Setúbal em 2018 é contra a praça
de jorna. Diga lá, sra. ministra, quem é que está do lado da modernidade.