“Estive ao lado dos estudantes nas greves
académicas de 62, mas cumpri o serviço militar, convencido de que “Angola era
nossa” “ - Júlio de Almeida Pires, médico e autarca
Quais são as suas recordações de
infância?
Nasci
no Pé da Serra onde andei à escola no pré-escolar, tinha 5/6 anos, com o
professor Rovisco. Andei 2 anos na 1ª classe para que a escola pudesse
funcionar com os alunos suficientes. Andei aqui até à 4ª classe com o professor
Antunes que deixou gratas recordações no Pé da Serra. Era um grande pedagogo e
adepto de uma escola não só dentro da sala de aula. Fazíamos magustos,
passeios, jogos de futebol.
Fiz
os exames da 3ª e 4ª classe (nesse tempo havia exames e rigorosos), de
admissão. Entrei para o Liceu e com 13 anos tive as notas mais altas, Estudei 5
anos no Colégio Infante de Sagres (Mouriscas), graças aos sacrifícios dos meus
pais. Eram pequenos agricultores, viviam com as dificuldades da época,
trabalhavam desde o nascer ao pôr do sol, em tempo da 2ª Guerra Mundial, em que
havia racionamento de farinhas e outros géneros. O que lhes valia era a
azeitona que moíam todos os anos e o azeite que depois vendiam.
Um tempo de mocidade para esquecer?
Não,
pelo contrário. Tive uma mocidade muito feliz. Brincávamos muito, íamos aos
ninhos, nadara para a ribeira e apanhávamos peixes à lapa. Nunca faltávamos na
romaria da Senhora da Graça. Comprávamos um pirolito e uma santinha de açúcar
que trazíamos ao pescoço. Íamos e vínhamos a pé e no regresso nadávamos no Pego
dos Burros.
Como foi a sua vida de estudante?
Nas
Mouriscas, era uma vida muito intensa, sendo jovens e com dificuldades. A casa
onde estava não tinha água canalizada nem luz eléctrica, estudava à luz do
petróleo. Íamos ao cinema a Abrantes, fazíamos teatro e tínhamos professores
muito exigentes. Fiz o 5º ano em Portalegre e depois, no ano de 1953 fui para
Castelo Branco para o Instituto de Santo António que ficava perto dos Correios.
A vida era diferente, numa cidade. Estive em casa da família Castanheira e ali
conheci o senhor Carvalhinho, que era tio do Proença de Carvalho e irmão do
Arlindo de Carvalho, compositor muito conhecido. O senhor Carvalhinho tinha uma
aparelhagem e eu acompanhava-o por todas as terras aonde ia, em festas e
inaugurações. Andei três anos para fazer o 7º ano e deixei duas cadeiras,
devido a uma situação insólita. Eu era bom aluno a matemática e ciências
naturais e acontecia que nos exames tirava 18 na prova escrita e o professor,
na prova oral, dava-me 4. Fez-me isso duas vezes e por fim deu-me 16 valores.
Com isto tive de fazer exame de aptidão à Universidade, o que fiz em Setembro
de 1957, de acesso à Faculdade de Medicina. Antes, um colega de estudos, Saul
Marques, tinha-me dito para concorrer aos Correios e ao mesmo tempo surge a
resposta dos CTT para um estágio de 120 dias, a ganhar 975 escudos mensais, um
grande ordenado para a época. Entrei para a Universidade e só com um esforço
enorme conseguia conciliar o trabalho e as aulas. Marcava as aulas práticas
para a parte da tarde, frequentava as aulas o mais possível e estudava muito.
Dormia, por isso, muito pouco. Acabei o 1º ano e logo a seguir fui colocado nos
CTT em Leiria. Era
um grande problema. Trabalhei ainda em Leiria nos meses de Agosto e Setembro de
1958, fiz um requerimento ao Ministério e consegui a colocação nos CTT em Coimbra. No 2º ano de
Medicina, tinha a preocupação de assistir a todas as aulas. Trabalhava nos CTT
desde as 2,30 às 8,30h da manhã e de tarde das 16 às 18 horas, o resto do tempo
era para o estudo e para dormir algum tempo. Foi um ano muito intenso.
Em
1960 sou chamado para a tropa. Tinha perdido uma cadeira do 2º ano e
chamaram-me para Mafra, para onde fui em Agosto. Dou parte de doente, fiz o 1º Ciclo do
COM e volto a Coimbra. Em 1961 rebenta a guerra colonial, já tinha concluído o
2º ano e parte do 3º. Casei em Setembro desse ano, no Pé da Serra, com a Maria
Louro. Quinze dias depois do casamento sou avisado para ir tomar conta da
estação dos CTT de Góis. Mal cheguei a Góis tinha um telegrama de Mafra para
frequentar o 2º Ciclo do COM. Conclui o Curso de Oficiais Milicianos e sou
colocado no RI 12 de Coimbra, onde dava instrução a recrutas e ao mesmo tempo
concluí o 4º ano de medicina. Sou mobilizado para Angola em Setembro de 62,
estive 29 meses em Cabinda e regressei a Portugal em 31 de Dezembro de 1964.
Peço
para continuar na tropa, como tenente de Infantaria, onde estou até Janeiro de
1970, tendo concluído o curso de Medicina em 1966, ano em que nasceu o meu
filho mais novo.
Concluí
o curso aos 30 anos, com uma tese que tratava das “Doenças importadas pelas
tropas do Ultramar”, sendo aprovado com
18 valores e distinção.
Faço
o estágio e sou convidado para assistente de bacteriologia /parasitologia pelo
prof. Henrique de Oliveira, serviço onde me mantive até Setembro de 1974 quando
vim para Portalegre.
Em
1970 fiz exame do Internato Geral e entro na especialidade de Análises Clínicas
e em 1973 concluí a especialidade de Patologia Clínica, tendo continuado nos
Hospitais da Universidade e nos serviços de biologia, onde era assistente.
Como é que entra a política na sua
vida?
Eu
não tinha educação política, nunca tive. Em Coimbra, durante as greves de 62
onde entrou o Adriano Correia de Oliveira, o Jorge Sampaio e outros, eu estava
no 4º ano de Medicina e era aspirante, pronto a marchar para Angola. Nessa
altura, fiz a minha opção ao lado dos estudantes e participei na greve aos
exames. Depois fui para Cabinda e nesse período, até 1965, acreditava que
“Angola era nossa!”. Nessa altura contactei, em Cabinda, com o Gomes Mota, que
tinha sido convidado por Salazar para assistente na Faculdade de Direito. E ele
recusou. Gomes Mota era o tesoureiro do Batalhão de Caçadores e tinha uma
grande visão política. Contactava com o Mário Soares, lia o “Le Monde” e outra
imprensa francófona, andava a par do mundo. Eu perguntava-lhe: se não concorda
com a política ultramarina, por que é que não foge? Está aqui tão perto da
fronteira do Congo?
Ele
respondia-me sempre: “sou cidadão português e tenho de cumprir o meu dever”.
Quando
regressei a Coimbra nunca mais o vi e depois do 25 de Abril aparece no PS.
Em
Coimbra, nos anos 60 e 70 até ao 25 de Abril, falava-se muito em política. Eu tinha
alguns amigos como o António Portugal, o Pinto da Costa (irmão do presidente do
Porto) e outros que me chamavam a atenção para certas questões, mas faltava-me
cultura política de base. Os estudos, o trabalho e a tropa tinham-me absorvido
de tal forma que pouco tempo me sobrava para essas reflexões que eram precisas
e devo dizê-lo, a guerra colonial – talvez por ter estado em Cabinda – não me
despertou politicamente. Só em 1972 é que comecei a ver que a questão colonial
de outra forma.. Nessa altura já esperava o desfecho que se deu com o 25 de
Abril e era, convictamente, de esquerda, ainda que não filiado em qualquer
partido.
As
minhas primeiras leituras políticas foram em 1968 com um livro de Marx,
emprestado por um aluno, brasileiro, que estudava medicina. Era já bastante
conhecido em Coimbra, como médico das Caixas, muito empenhado e por ter
trabalhado nos CTT. Os meus amigos eram o Lousã Henriques e o Dário Costa,
assistentes como eu e politicamente muito mais evoluídos. Como tenente, fiz as
inspecções médicas em todos os concelhos, entre Douro e Mondego e aí, sim, pude
constatar a desorganização, o abandono e a miséria que lavrava no país. Foi uma
experiência muito forte e que me marcou, social e politicamente.
“O Poder Local contribuiu muito mais
para o desenvolvimento do país que a política dos governos centrais.”
Onde estava e como viveu o 25 de Abril?
Nesse
dia, às 9 horas, estava a dar uma aula prática quando fui avisado de que se
tinha dado uma revolução democrática. A aula acabou logo ali, demos vivas a
Portugal, à revolução, liberdade e à democracia. Foi um acontecimento que não
se apagará da minha memória.
Mantive-me
em Coimbra e inscrevi-me no PCP, tendo sido convidado por todos os partidos
esquerdistas, desde o MRPP ao MÊS.
Nesse
período deslocava-me frequentemente de Coimbra a Nisa para intervenções
políticas e tive influência na escolha da 1ª Comissão Administrativa da Câmara.
Foi um processo muito interessante, pois quisemos que os lugares fossem
preenchidos por eleição. Ouvimos as populações em assembleias nas freguesias e
foram elas que escolheram os nomes que, por último, foram propostos e aprovados
numa grande assembleia, com elementos de Nisa, Alpalhão, Tolosa, Santana e S. Simão.
Foi
um período muito intenso e desgastante, mas era um trabalho feito com muito
gosto e paixão. Vinha todas as semanas a Nisa e sentia uma grande aceitação das
pessoas, não só no Pé da Serra como no concelho. Foi um tempo de organização,
desde os arquivos da Câmara aos das escolas que estavam abandonados.
A
intervenção política foi muito difícil, até na própria vila de Nisa. As pessoas
mais idosas tinham muito receio e só com fantástico grupo de jovens, entre os
18 e 25 anos foi possível avançar alguma coisa a nível do MDP e do Partido Comunista.
A
nossa intenção era a de democratizar o concelho, a substituição das Juntas por
comissões administrativas eleitas pela população. Muitas dessas pessoas eram
amigas e algumas ficaram a pensar que eu era um falso amigo, o que não era
verdade. Tinha apenas um sentido da democracia e dos passos que era preciso
dar.
Reconheço,
no entanto, que houve algumas greves em Nisa mal organizadas e não adequadas
para o meio. Desde logo porque no concelho o que predominava eram os pequenos e
médios agricultores e não os operários agrícolas. Essa era a realidade nos anos
50 e 60. O facto despertou incompreensões e acentuou divisões, o nosso trabalho
político ficou mais difícil.
Há alguns episódios desse tempo que
queira recordar?
No
28 de Setembro de 1974, em Coimbra, estava com outros camaradas e estudantes no
controlo das estradas. A certa altura aparece um carro, topo de gama, onde
vinha um recente ex-bastonário da Ordem dos Advogados, que na altura era
estudante de Direito. O indivíduo ter-se-á recusado a sair, os estudantes
começaram a bater-lhe no carro e a situação teria descambado para um acto
trágico, quando eu apareci e o Lousã Henriques. Demovemos os estudantes,
chamámos a polícia e o senhor lá foi em paz, mas com um grande susto. A minha
acção foi sempre apaziguadora.
Como aparece no poder local?
Em
1976, já estava em Portalegre há dois anos, fui candidato pela FEPU ( Frente
Eleitoral Povo Unido) à Câmara, sendo eleito por 1165 votos, juntamente com o
dr. Anselmo (CDS), António Bento, Vences Cordeiro e Francisco Trindade (PS).
Fiz
o meu trabalho na vereação, nunca faltei a qualquer reunião, colaborei com
todos, defendendo o princípio da unidade, porque nas autarquias tem que se
trabalhar pelo concelho. Naquele tempo as autarquias não tinham praticamente
nada e só a partir de 1978 com a aprovação da Lei das Finanças Locais é que as
coisas começaram a avançar um pouco e se tornou visível algum trabalho da
Câmara.
Como analisa, à distância, o seu
desempenho?
Penso
que tive uma acção muito positiva e no pelouro que detinha, o da Saúde e
Higiene, algo foi feito, com a 1ª contratação de cantoneiros de vias
municipais, a extensão da recolha do lixo a todas as freguesias, os contactos
para a vinda de médicos para o concelho, ao abrigo de um programa que era o
Serviço Médico à Periferia, através do qual tivemos aqui 9 médicos.
Fui
e continuo como autarca desde há 30 anos, na Assembleia Municipal, na Junta e
Assembleia de Freguesia de S. Simão.
O país e o concelho: o que mudou nestes
30 anos?
O
meu conhecimento pessoal, do concelho e do pais, antes e depois do 25 de Abril,
diz-me que com o Poder Local, o país deu um salto muito grande, tanto
quantitativo como qualitativo, a nível do interior. Estradas, abastecimento de
águas, esgotos, luz, escolas, parques infantis, centros de apoio para idosos, a
qualidade de vida aumentou muito.
O
Poder Local lançou as bases e contribuiu muito mais para o desenvolvimento que
a política dos governos centrais. Globalmente, acho que a acção do poder local
foi muito boa, o que não significa que seja perfeita e que em muitas autarquias
não haja situações de corrupção e compadrio.
Mas
é preciso dizer também que o Poder Local não tem peso nem influência na
Agricultura, Finanças, Saúde, Ambiente, Desenvolvimento Rural e noutras áreas,
porque se tivesse e alguns poderes lhe fossem entregues, o seu desempenho ainda
seria melhor e não teríamos assistido ao processo de desertificação que está a
acontecer.
A
nível do país não melhorámos mais e não atingimos outro nível de
desenvolvimento e bem-estar porque as politicas seguidas por quem esteve ou
está no Governo nestes 30 anos, são neo-liberais e com influências
estrangeiras.
Bruxelas
diz para se fecharem os lagares ou os matadouros municipais e nós seguimos à
risca. Em Espanha, não. A organização da agricultura é um desastre, a nível dos
pequenos agricultores, condenados à extinção e o país à desertificação.
Mário Mendes - Jornal de Nisa - 29/11/2006