2.11.18

ENTREVISTA - Júlio de Almeida Pires - JN 220 - Nov. 2006

“Estive ao lado dos estudantes nas greves académicas de 62, mas cumpri o serviço militar, convencido de que “Angola era nossa” “ - Júlio de Almeida Pires, médico e autarca
Quais são as suas recordações de infância?
Nasci no Pé da Serra onde andei à escola no pré-escolar, tinha 5/6 anos, com o professor Rovisco. Andei 2 anos na 1ª classe para que a escola pudesse funcionar com os alunos suficientes. Andei aqui até à 4ª classe com o professor Antunes que deixou gratas recordações no Pé da Serra. Era um grande pedagogo e adepto de uma escola não só dentro da sala de aula. Fazíamos magustos, passeios, jogos de futebol.
Fiz os exames da 3ª e 4ª classe (nesse tempo havia exames e rigorosos), de admissão. Entrei para o Liceu e com 13 anos tive as notas mais altas, Estudei 5 anos no Colégio Infante de Sagres (Mouriscas), graças aos sacrifícios dos meus pais. Eram pequenos agricultores, viviam com as dificuldades da época, trabalhavam desde o nascer ao pôr do sol, em tempo da 2ª Guerra Mundial, em que havia racionamento de farinhas e outros géneros. O que lhes valia era a azeitona que moíam todos os anos e o azeite que depois vendiam.
Um tempo de mocidade para esquecer?
Não, pelo contrário. Tive uma mocidade muito feliz. Brincávamos muito, íamos aos ninhos, nadara para a ribeira e apanhávamos peixes à lapa. Nunca faltávamos na romaria da Senhora da Graça. Comprávamos um pirolito e uma santinha de açúcar que trazíamos ao pescoço. Íamos e vínhamos a pé e no regresso nadávamos no Pego dos Burros.
Como foi a sua vida de estudante?
Nas Mouriscas, era uma vida muito intensa, sendo jovens e com dificuldades. A casa onde estava não tinha água canalizada nem luz eléctrica, estudava à luz do petróleo. Íamos ao cinema a Abrantes, fazíamos teatro e tínhamos professores muito exigentes. Fiz o 5º ano em Portalegre e depois, no ano de 1953 fui para Castelo Branco para o Instituto de Santo António que ficava perto dos Correios. A vida era diferente, numa cidade. Estive em casa da família Castanheira e ali conheci o senhor Carvalhinho, que era tio do Proença de Carvalho e irmão do Arlindo de Carvalho, compositor muito conhecido. O senhor Carvalhinho tinha uma aparelhagem e eu acompanhava-o por todas as terras aonde ia, em festas e inaugurações. Andei três anos para fazer o 7º ano e deixei duas cadeiras, devido a uma situação insólita. Eu era bom aluno a matemática e ciências naturais e acontecia que nos exames tirava 18 na prova escrita e o professor, na prova oral, dava-me 4. Fez-me isso duas vezes e por fim deu-me 16 valores. Com isto tive de fazer exame de aptidão à Universidade, o que fiz em Setembro de 1957, de acesso à Faculdade de Medicina. Antes, um colega de estudos, Saul Marques, tinha-me dito para concorrer aos Correios e ao mesmo tempo surge a resposta dos CTT para um estágio de 120 dias, a ganhar 975 escudos mensais, um grande ordenado para a época. Entrei para a Universidade e só com um esforço enorme conseguia conciliar o trabalho e as aulas. Marcava as aulas práticas para a parte da tarde, frequentava as aulas o mais possível e estudava muito. Dormia, por isso, muito pouco. Acabei o 1º ano e logo a seguir fui colocado nos CTT em Leiria. Era um grande problema. Trabalhei ainda em Leiria nos meses de Agosto e Setembro de 1958, fiz um requerimento ao Ministério e consegui a colocação nos CTT em Coimbra. No 2º ano de Medicina, tinha a preocupação de assistir a todas as aulas. Trabalhava nos CTT desde as 2,30 às 8,30h da manhã e de tarde das 16 às 18 horas, o resto do tempo era para o estudo e para dormir algum tempo. Foi um ano muito intenso.
Em 1960 sou chamado para a tropa. Tinha perdido uma cadeira do 2º ano e chamaram-me para Mafra, para onde fui em Agosto. Dou parte de doente, fiz o 1º Ciclo do COM e volto a Coimbra. Em 1961 rebenta a guerra colonial, já tinha concluído o 2º ano e parte do 3º. Casei em Setembro desse ano, no Pé da Serra, com a Maria Louro. Quinze dias depois do casamento sou avisado para ir tomar conta da estação dos CTT de Góis. Mal cheguei a Góis tinha um telegrama de Mafra para frequentar o 2º Ciclo do COM. Conclui o Curso de Oficiais Milicianos e sou colocado no RI 12 de Coimbra, onde dava instrução a recrutas e ao mesmo tempo concluí o 4º ano de medicina. Sou mobilizado para Angola em Setembro de 62, estive 29 meses em Cabinda e regressei a Portugal em 31 de Dezembro de 1964.
Peço para continuar na tropa, como tenente de Infantaria, onde estou até Janeiro de 1970, tendo concluído o curso de Medicina em 1966, ano em que nasceu o meu filho mais novo.
Concluí o curso aos 30 anos, com uma tese que tratava das “Doenças importadas pelas tropas do Ultramar”,  sendo aprovado com 18 valores e distinção.
Faço o estágio e sou convidado para assistente de bacteriologia /parasitologia pelo prof. Henrique de Oliveira, serviço onde me mantive até Setembro de 1974 quando vim para Portalegre.
Em 1970 fiz exame do Internato Geral e entro na especialidade de Análises Clínicas e em 1973 concluí a especialidade de Patologia Clínica, tendo continuado nos Hospitais da Universidade e nos serviços de biologia, onde era assistente.
Como é que entra a política na sua vida?
Eu não tinha educação política, nunca tive. Em Coimbra, durante as greves de 62 onde entrou o Adriano Correia de Oliveira, o Jorge Sampaio e outros, eu estava no 4º ano de Medicina e era aspirante, pronto a marchar para Angola. Nessa altura, fiz a minha opção ao lado dos estudantes e participei na greve aos exames. Depois fui para Cabinda e nesse período, até 1965, acreditava que “Angola era nossa!”. Nessa altura contactei, em Cabinda, com o Gomes Mota, que tinha sido convidado por Salazar para assistente na Faculdade de Direito. E ele recusou. Gomes Mota era o tesoureiro do Batalhão de Caçadores e tinha uma grande visão política. Contactava com o Mário Soares, lia o “Le Monde” e outra imprensa francófona, andava a par do mundo. Eu perguntava-lhe: se não concorda com a política ultramarina, por que é que não foge? Está aqui tão perto da fronteira do Congo?
Ele respondia-me sempre: “sou cidadão português e tenho de cumprir o meu dever”.
Quando regressei a Coimbra nunca mais o vi e depois do 25 de Abril aparece no PS.
Em Coimbra, nos anos 60 e 70 até ao 25 de Abril, falava-se muito em política. Eu tinha alguns amigos como o António Portugal, o Pinto da Costa (irmão do presidente do Porto) e outros que me chamavam a atenção para certas questões, mas faltava-me cultura política de base. Os estudos, o trabalho e a tropa tinham-me absorvido de tal forma que pouco tempo me sobrava para essas reflexões que eram precisas e devo dizê-lo, a guerra colonial – talvez por ter estado em Cabinda – não me despertou politicamente. Só em 1972 é que comecei a ver que a questão colonial de outra forma.. Nessa altura já esperava o desfecho que se deu com o 25 de Abril e era, convictamente, de esquerda, ainda que não filiado em qualquer partido.
As minhas primeiras leituras políticas foram em 1968 com um livro de Marx, emprestado por um aluno, brasileiro, que estudava medicina. Era já bastante conhecido em Coimbra, como médico das Caixas, muito empenhado e por ter trabalhado nos CTT. Os meus amigos eram o Lousã Henriques e o Dário Costa, assistentes como eu e politicamente muito mais evoluídos. Como tenente, fiz as inspecções médicas em todos os concelhos, entre Douro e Mondego e aí, sim, pude constatar a desorganização, o abandono e a miséria que lavrava no país. Foi uma experiência muito forte e que me marcou, social e politicamente.
“O Poder Local contribuiu muito mais para o desenvolvimento do país que a política dos governos centrais.”
Onde estava e como viveu o 25 de Abril?
Nesse dia, às 9 horas, estava a dar uma aula prática quando fui avisado de que se tinha dado uma revolução democrática. A aula acabou logo ali, demos vivas a Portugal, à revolução, liberdade e à democracia. Foi um acontecimento que não se apagará da minha memória.
Mantive-me em Coimbra e inscrevi-me no PCP, tendo sido convidado por todos os partidos esquerdistas, desde o MRPP ao MÊS.
Nesse período deslocava-me frequentemente de Coimbra a Nisa para intervenções políticas e tive influência na escolha da 1ª Comissão Administrativa da Câmara. Foi um processo muito interessante, pois quisemos que os lugares fossem preenchidos por eleição. Ouvimos as populações em assembleias nas freguesias e foram elas que escolheram os nomes que, por último, foram propostos e aprovados numa grande assembleia, com elementos de Nisa, Alpalhão,  Tolosa, Santana e S. Simão.
Foi um período muito intenso e desgastante, mas era um trabalho feito com muito gosto e paixão. Vinha todas as semanas a Nisa e sentia uma grande aceitação das pessoas, não só no Pé da Serra como no concelho. Foi um tempo de organização, desde os arquivos da Câmara aos das escolas que estavam abandonados.
A intervenção política foi muito difícil, até na própria vila de Nisa. As pessoas mais idosas tinham muito receio e só com fantástico grupo de jovens, entre os 18 e 25 anos foi possível avançar alguma coisa a nível do MDP e do Partido Comunista.
Guarda algumas mágoas desse tempo?
A nossa intenção era a de democratizar o concelho, a substituição das Juntas por comissões administrativas eleitas pela população. Muitas dessas pessoas eram amigas e algumas ficaram a pensar que eu era um falso amigo, o que não era verdade. Tinha apenas um sentido da democracia e dos passos que era preciso dar.
Reconheço, no entanto, que houve algumas greves em Nisa mal organizadas e não adequadas para o meio. Desde logo porque no concelho o que predominava eram os pequenos e médios agricultores e não os operários agrícolas. Essa era a realidade nos anos 50 e 60. O facto despertou incompreensões e acentuou divisões, o nosso trabalho político ficou mais difícil.
Há alguns episódios desse tempo que queira recordar?
No 28 de Setembro de 1974, em Coimbra, estava com outros camaradas e estudantes no controlo das estradas. A certa altura aparece um carro, topo de gama, onde vinha um recente ex-bastonário da Ordem dos Advogados, que na altura era estudante de Direito. O indivíduo ter-se-á recusado a sair, os estudantes começaram a bater-lhe no carro e a situação teria descambado para um acto trágico, quando eu apareci e o Lousã Henriques. Demovemos os estudantes, chamámos a polícia e o senhor lá foi em paz, mas com um grande susto. A minha acção foi sempre apaziguadora.
 Como aparece no poder local?
Em 1976, já estava em Portalegre há dois anos, fui candidato pela FEPU ( Frente Eleitoral Povo Unido) à Câmara, sendo eleito por 1165 votos, juntamente com o dr. Anselmo (CDS), António Bento, Vences Cordeiro e Francisco Trindade (PS).
Fiz o meu trabalho na vereação, nunca faltei a qualquer reunião, colaborei com todos, defendendo o princípio da unidade, porque nas autarquias tem que se trabalhar pelo concelho. Naquele tempo as autarquias não tinham praticamente nada e só a partir de 1978 com a aprovação da Lei das Finanças Locais é que as coisas começaram a avançar um pouco e se tornou visível algum trabalho da Câmara.
Como analisa, à distância, o seu desempenho?
Penso que tive uma acção muito positiva e no pelouro que detinha, o da Saúde e Higiene, algo foi feito, com a 1ª contratação de cantoneiros de vias municipais, a extensão da recolha do lixo a todas as freguesias, os contactos para a vinda de médicos para o concelho, ao abrigo de um programa que era o Serviço Médico à Periferia, através do qual tivemos aqui 9 médicos.
Fui e continuo como autarca desde há 30 anos, na Assembleia Municipal, na Junta e Assembleia de Freguesia de S. Simão.
O país e o concelho: o que mudou nestes 30 anos?
O meu conhecimento pessoal, do concelho e do pais, antes e depois do 25 de Abril, diz-me que com o Poder Local, o país deu um salto muito grande, tanto quantitativo como qualitativo, a nível do interior. Estradas, abastecimento de águas, esgotos, luz, escolas, parques infantis, centros de apoio para idosos, a qualidade de vida aumentou muito.
O Poder Local lançou as bases e contribuiu muito mais para o desenvolvimento que a política dos governos centrais. Globalmente, acho que a acção do poder local foi muito boa, o que não significa que seja perfeita e que em muitas autarquias não haja situações de corrupção e compadrio.
Mas é preciso dizer também que o Poder Local não tem peso nem influência na Agricultura, Finanças, Saúde, Ambiente, Desenvolvimento Rural e noutras áreas, porque se tivesse e alguns poderes lhe fossem entregues, o seu desempenho ainda seria melhor e não teríamos assistido ao processo de desertificação que está a acontecer.
A nível do país não melhorámos mais e não atingimos outro nível de desenvolvimento e bem-estar porque as politicas seguidas por quem esteve ou está no Governo nestes 30 anos, são neo-liberais e com influências estrangeiras.
Bruxelas diz para se fecharem os lagares ou os matadouros municipais e nós seguimos à risca. Em Espanha, não. A organização da agricultura é um desastre, a nível dos pequenos agricultores, condenados à extinção e o país à desertificação.
Mário Mendes - Jornal de Nisa - 29/11/2006