10.6.16

CRÓNICAS DA TABANCA: Carta ao senhor Luís Vaz de Camões

 Caro Luís Vaz, Meu ilustre antepassado
Hoje, lembrei-me de te escrever e aqui estou, tentando alinhavar as palavras, o sentido e a forma para dar vida à tua imagem, enquanto gozo o perfume do silêncio da noite. Imagino o Adamastor, horrendo, terrível, qual Rasputine, que engolia caravelas e que me impingiram na escola primária.
Vejo os portugueses, quais gigantes, desbaratando os infiéis, em duras refregas pela dilatação da fé. E as tuas oitavas de permeio, a complicarem-me o sistema nervoso...
Conhecemos-te tão pouco e tu foste tão grande!...
Amaste a Pátria com um estranho afecto. Pátria, é isso! Aqui está a palavra-chave, fundamental. A ela se transcrevem os teus feitos, os teus versos, a tua vida.
Dela partiste e a ela regressaste, carregado de poemas, despojado de haveres.
Andaste por “mares nunca dantes navegados”, transbordando de sonho e de glória.
Buscaste nas musas a inspiração para cantares “o peito ilustre lusitano” e a gesta heróica deste povo, destas gentes que “da ocidental praia lusitana” partiram à procura de novos mundos para o mundo.
Escreveste redondilhas, odes, elegias, écoglas, sonetos, oitavas, canções e sei lá que mais. Eras um lírico e um galanteador. Que o digam as donzelas da corte e das redondezas, para quem serias uma espécie de Marco Paulo da época.
Eras certamente poeta de fácil inspiração. Só assim se compreende que apesar de toda a obra que nos legaste, ainda tiveste tempo para pelejar na corte, no norte de África, onde perdeste um olho, e um pouco pelos quatro cantos da terra. Isto sem contar com os cargos oficiais e oficiosos – qual Deus Pinheiros dos nossos dias – que exerceste e que te levaram à Índia, a Macau, a Moçambique e as outras paragens.
Sabemos pouco de ti! Conhecemos-te ainda pior, mas devias ser chato, a atender nas vezs que ouvimos dizer: “vai chatear o Camões!”.
E pensam assim os meninos e meninas do Preparatório e do Secundário, a quem és impingido em doses maciças de análise gramatical, textual e estilística. Andam nisto anos e anos e acabam por abominar-te...
E se te conhecessem eram capazes de pensar de outra maneira. Mas não...
Não te admires nem fiques triste. É este o sortilégio (estranho sortilégio) dos portugueses. Tens sido bem mal tratado, apesar de todos os anos, numa data certa se lembrarem de ti. Este ano hás-de ser falado muitas vezes na CEE (não te admires com a sigla, é uma espécie de Companhia das Índias, alargada), em Sevilha, numa Exposição Universal que tem dado água pela barba, enfim tudo será pretexto para cantarem loas à tua memória.
Quer dizer-te que gostei de te conhecer, embora a tua apresentação na escola não tivesse sido muito feliz. Depois e ao longo dos anos, foram-me falando de ti, primeiro em jeito de introdução, a seguir como comprimido para dormir...
Não lhes interessava o homem que tu foste, a obra que deixaste..., mas, desculpa confessar-te uma coisa: tu também tens culpa da gente não te conhecer (e querer) melhor. Quando escreveste “Os Lusíadas” devias pensar menos na Corte e na nobreza e mais no Povo.
Usaste uma linguagem heróica, de epopeia (a condizer) épica, fazendo lembrar a parte final do “Bolero” de Ravel, só que este a gente percebe bem e “Os Lusíadas” são um poema quase transcendental.
Apesar de tudo vou lendo os teus versos e, sem interferências alheias, descobrindo e admirando a tua obra. De tal forma que procurarei transmiti-la à minha filha (não para ela comer a sopa ou adormecer) mas para conhecer o Camões que era cego de um olho, que viveu pobre e morreu miseravelmente.
E para que um dia, olhando este jardim à beira-mar plantado, diga também:
“Esta é a ditosa Pátria minha amada”.

Mário Mendes (texto escrito em 1992, não sei a que pretexto...)