Caro Luís Vaz, Meu
ilustre antepassado
Hoje, lembrei-me
de te escrever e aqui estou, tentando alinhavar as palavras, o sentido e a
forma para dar vida à tua imagem, enquanto gozo o perfume do silêncio da
noite. Imagino o Adamastor, horrendo, terrível, qual Rasputine, que engolia
caravelas e que me impingiram na escola primária.
Vejo os
portugueses, quais gigantes, desbaratando os infiéis, em duras refregas pela
dilatação da fé. E as tuas oitavas de permeio, a complicarem-me o sistema
nervoso...
Conhecemos-te tão
pouco e tu foste tão grande!...
Amaste a Pátria
com um estranho afecto. Pátria, é isso! Aqui está a palavra-chave, fundamental.
A ela se transcrevem os teus feitos, os teus versos, a tua vida.
Dela partiste e a
ela regressaste, carregado de poemas, despojado de haveres.
Andaste por “mares
nunca dantes navegados”, transbordando de sonho e de glória.
Buscaste nas musas
a inspiração para cantares “o peito ilustre lusitano” e a gesta heróica deste
povo, destas gentes que “da ocidental praia lusitana” partiram à procura de
novos mundos para o mundo.
Escreveste
redondilhas, odes, elegias, écoglas, sonetos, oitavas, canções e sei lá que
mais. Eras um lírico e um galanteador. Que o digam as donzelas da corte e das
redondezas, para quem serias uma espécie de Marco Paulo da época.
Eras certamente
poeta de fácil inspiração. Só assim se compreende que apesar de toda a obra que
nos legaste, ainda tiveste tempo para pelejar na corte, no norte de África,
onde perdeste um olho, e um pouco pelos quatro cantos da terra. Isto sem contar
com os cargos oficiais e oficiosos – qual Deus Pinheiros dos nossos dias – que exerceste
e que te levaram à Índia, a Macau, a Moçambique e as outras paragens.
Sabemos pouco de
ti! Conhecemos-te ainda pior, mas devias ser chato, a atender nas vezs que
ouvimos dizer: “vai chatear o Camões!”.
E pensam assim os
meninos e meninas do Preparatório e do Secundário, a quem és impingido em doses
maciças de análise gramatical, textual e estilística. Andam nisto anos e anos e
acabam por abominar-te...
E se te
conhecessem eram capazes de pensar de outra maneira. Mas não...
Não te admires nem
fiques triste. É este o sortilégio (estranho sortilégio) dos portugueses. Tens
sido bem mal tratado, apesar de todos os anos, numa data certa se lembrarem de
ti. Este ano hás-de ser falado muitas vezes na CEE (não te admires com a sigla,
é uma espécie de Companhia das Índias, alargada), em Sevilha, numa Exposição
Universal que tem dado água pela barba, enfim tudo será pretexto para cantarem
loas à tua memória.
Quer dizer-te que
gostei de te conhecer, embora a tua apresentação na escola não tivesse sido
muito feliz. Depois e ao longo dos anos, foram-me falando de ti, primeiro em
jeito de introdução, a seguir como comprimido para dormir...
Não lhes
interessava o homem que tu foste, a obra que deixaste..., mas, desculpa
confessar-te uma coisa: tu também tens culpa da gente não te conhecer (e
querer) melhor. Quando escreveste “Os Lusíadas” devias pensar menos na Corte e
na nobreza e mais no Povo.
Usaste uma
linguagem heróica, de epopeia (a condizer) épica, fazendo lembrar a parte final
do “Bolero” de Ravel, só que este a gente percebe bem e “Os Lusíadas” são um
poema quase transcendental.
Apesar de tudo vou
lendo os teus versos e, sem interferências alheias, descobrindo e admirando a
tua obra. De tal forma que procurarei transmiti-la à minha filha (não para ela
comer a sopa ou adormecer) mas para conhecer o Camões que era cego de um olho,
que viveu pobre e morreu miseravelmente.
E para que um dia,
olhando este jardim à beira-mar plantado, diga também:
“Esta é a ditosa Pátria
minha amada”.
Mário Mendes (texto escrito em 1992, não sei a que pretexto...)