12.6.16

NISA: Retratos de Feira

Feira é espectáculo, diversão, barulho, encontrão, confusão... negócio.
Há circo, palhaço, equilibrista e ilusionista. Há café de saco e farturas. Há carrocel que corre, corre, rodopia, rodopia, rodopia, sobe e desce e nos deixa no mesmo sítio. Há carrinhos de choque – é cada choque c´até faz faísca! Alti-falantes berram na guerra das audiências pr´a compradores conquistar.
Uns ocupam grandes espaços e pagam-nos bem pagos, outros já não têm espaço, saem e ficam de fora. Grandes, sempre são grandes!
O vendedor de banha de cobra entrou pelo Jardim adentro e instalou-se. Perfeito conhecedor da psicologia dos homens, dos homens que tudo fazem para mitigar os males, vende-lhes a cura e trata-lhes da saúde. Atrai-os e encanta-os com a dita, com a cobra, fala-lhes dos males – da bexiga, do coração, dos olhos, das simples dores de cabeça... fala-lhes de curas milagrosas. Mostra líquidos que fervem sem haver lume e mostra fumos que sobem sem haver fogo.
E a cobra?! Como é grande, mete medo! Mas o homem domina-a, inspira força e saber. Sabe de medicina, de cobras e de magia. O povo atrai e a “roda” aumenta com alguns nos bicos dos pés. Lá vem a “banha” que não é muita, já se diz em voz baixa, mas talvez chegue para todos.
- Tenham calma, não se empurrem, não tenho muitos, mas chega para todos! Mais um para aquele senhor... mais outro para aquele sujeito de bengala... mais outro...
E as pessoas simples, honestas e trabalhadoras, cansadas de uma vida de trabalhos e de amarguras, fartas do “mal”, acotovelam-se, esticam o braço com o papel (nota) na ponta dos dedos calosos e recebem a promessa (caixa, frasco...) da cura.

Partem felizes!
Passados tempos, descobrem que foram enganados. Os males persistem e o homem ficou-lhes com a nota. Prometem a si mesmos que para a próxima farão contas com aquele aldrabão, porém têm a memória curta, os males continuam e para a próxima será o mesmo, será de novo o encantamento – o candidato promete, promete e os eleitores votam, votam nele.
Ah! Desculpem, estamos a falar do vendedor de banha de cobra e dos compradores de cura de males.
Pois é, escrevia sobre a Feira.
Lá estava também o homem dos retratos, o retratista. Retratista que passou à história, com esta história, entre outras histórias.
Cabisbaixo, ficou quedo, mudo e calado durante muito tempo. Não disse nada! Não tinha palavras. O sorriso que o alimentava morreu-lhe nos lábios da esperança, a alma de herói fugiu-lhe do corpo e o coração queria rebentar-lhe o peito, aquele peito forte e férreo que aguentara os embates da cornadura rija do touro nas duras pegas de caras.
Agora era diferente!
Tapou a objectiva da máquina. Rodou-a meia volta.
Embrulhou a sua objectiva no pano preto para a proteger das incidências dos raios solares e dos reflexos exteriores e guardou-a, a bom guardo, nos espaços interiores do seu eu.
Recolheu o fole. Fechou o tripé. Arrumou o material.
Já de máquina às costas e de balde na mão, ia-se embora sem nada dizer, mas voltou para trás para se despedir, para se despedir assim, assim deste modo.
Assim o queriam, assim mandavam, assim o mandavam.

Não haveria mais retratos à lá minuta. Fizera bastantes. Os tempos mudaram. Agora queriam coisas diferentes. Os tempos haviam mudado e os homens também. Em vez dos retratos à lá minuta que fizera para o povo e que o encantara, queriam publicitar valores, valores duvidosos, e vendiam-nos, vendiam-se. O tempo não perdoa e o tempo os julgará!
Lembram-se? Era no Jardim, ao lado do “repuxo”, lago que nos dias de Feira elevava o seu único jacto, central, de água a grande altura. A criançada gostava de ver o lago, a água a subir,a dançar no ar ao sabor do vento, a cair e a salpicar os desprevenidos. Gostava de ver a água, os peixes vermelhos a nadar e as folhas e as flores dos nenúfares a boiar.
Lá estava o homem que tirava os retratos, o retratista, muito perto daquele que vendia a banha de cobra.
O retratista tinha um caixote de madeira empoleirado sobre três pernas de madeira. Num dos lados do caixote havia um fole com um vidro redondo. No lado oposto havia uma espécie de de saia preta por dentro da qual o homem metia as mãos para mexer em coisas que tinha dentro do caixote e espreitava para dentro através de uma abertura que tinha na parte de cima e onde encostava a cara.
Nós ficávamos à frente do caixote, sob o olhar atento e embevecido das nossas mães, com um sorriso maroto e quietos para não “tremer” o retrato. Depois o homem tirava um papel de dentro do caixote. Lá estávamos nós, dizia ele, mas não podia ser, aquilo eram fantasmas. O homem metia depois este papel com a cabeça para baixo, num suporte à frente do vidro redondo. Metia novamente as mãos pela saia preta adentro, tornava a espreitar por cima e tirava de lá mais um papel que metia dentro de um balde com água.
Pouco a pouco, por magia, nós aparecíamos nesse papel, mas mais pequenos. Era o nosso retrato. Tínhamos tirado o retrato!
Era em Nisa, nos dias de Feira, próximo do “repuxo”, no Jardim Municipal. A água subia, dançava e descia, ao sabor do vento. O vendedor de banha de cobra começava mais uma sessão e o homem dos retratos abalava.
José Dinis Murta – O Distrito de Portalegre18/7/1997