A crítica e a reflexão são os primeiros passos para construção de uma pedagogia sobre a Palestina e seus processos engendrados por violências externas
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948. A carta, em seus 30 artigos, indica sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher considerando melhores condições de vida, sem qualquer distinção de raça, cor, sexo, religião ou visão política. Em seus primeiros artigos temos:
Artigo 1 – Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
Artigo 3 – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Se a pedagogia é um conjunto de técnicas, princípios, métodos e estratégias da educação e do ensino, nada mais pedagógico que dizer e reforçar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não contempla a realidade dos palestinos, pois há 76 anos eles perderam o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Não há direitos humanos para pessoas que são racializadas, criminalizadas e denominadas terroristas.
Considero a crítica e a reflexão os primeiros passos para construção de uma pedagogia sobre a Palestina e seus processos engendrados por violências externas, a fim de mudar a realidade e a produção de conhecimento que promove cotidianamente o epistemicídio dos palestinos, seja na história, seja nos livros didáticos, programas televisivos etc. Cabe a nós, neste processo didático-metodológico, descontruir a imagem constante que os atrela ao terrorismo, à violência.
Pergunto aos leitores: o que vocês aprenderam sobre a Palestina na escola? Na universidade? Na rua? Na família? Conhecem a realidade à qual são submetidos os palestinos desde o século XX? Existem esforços para apagar a cultura e a história deste povo desde a fundação do Estado de Israel, em 1948. Essa ausência de conhecimento impõe a urgência de promover uma pedagogia da Nakba (catástrofe), que nunca tem fim em terras palestinas. No Brasil, temos ainda, infelizmente, uma população que não sabe o que foi o processo de expulsão de mais de 800 mil palestinos de suas terras por meio de um projeto colonialista do estado sionista de Israel em 1948.
Desde a Nakba, assistimos a práticas de violações de direitos humanos, crimes de guerra e um apartheid que toma proporções violentas com a construção de um muro de 763 km na Cisjordânia, assim como a construção de mais de 300 checkpoints dificultando e/ou proibindo entrada e saída do território palestino. Cabe dizer que, com o muro, Israel se apropriou de 12% das terras que pertenciam à Palestina.
Mesmo que o Tribunal Internacional de Justiça de Haia tenha declarado ilegal a construção do muro em 2004, isso não mudou a realidade, não teve efeito algum para o governo israelense e muito menos para o mundo, que finge desconhecer as várias violações de direitos humanos que o povo palestino vem sofrendo ao longo do tempo. O muro viola a Declaração Universal dos Direitos Humanos quando separa famílias, e isso é possível constatar em documentários sobre o tema.
São várias as violações, começando pelo “respeito à propriedade”, nunca cumprido, pois os palestinos tiveram suas terras confiscadas, beneficiando mais de 700 mil colonos israelenses na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Quando nos deparamos com a “liberdade de culto” basta olhar para inúmeras vandalizações promovidas por soldados israelenses na mesquita Al Aqsa durante o mês do Ramadan (mês do jejum islâmico), assim como profanações por colonos israelenses dos lugares santos e de culto cristãos e muçulmanos e as agressões a membros do clero. O muro, por sua vez, dificulta a passagem de cidadãos palestinos em busca de assistência médica e/ou para visitar familiares, restringindo o direito de ir e vir.
Em 7 de outubro de 2023 assistimos à violência brutal do Hamas em ataque a Israel, o que fere também leis internacionais, e deve ser repudiado com veemência. No entanto, não podemos apenas localizar essa data quando tratamos de violações de direitos humanos, é preciso rever a história desses povos, e rever todo o desamparo ao qual a Faixa de Gaza e a Cisjordânia foram colocadas nas últimas sete décadas. São mais de dois meses em que vemos palestinos sendo assassinados de forma brutal, levando crianças, mulheres e homens à agonia extrema. Não há mobilizações suficientes para o cessar fogo e, enquanto isso não acontece, vidas palestinas vão sendo extirpadas, assinalando um processo que o historiador isralense, judeu, Ilan Pappe, chamou de limpeza étnica.
Temos discutido muito o racismo estrutural, título do livro do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, Silvio Almeida, no entanto, leitores não associam os mesmos efeitos da necropolítica vivida por pessoas negras no Brasil com o que vivem os palestinos. Silvio Almeida escreve: “O que se pode verificar até então é que a concepção institucional do racismo trata o poder como elemento central da relação racial. Com efeito, o racismo é dominação”. Os palestinos vêm sendo dominados e racializados por uma estrutura de poder que promove a necropolítica vivenciada por todos os homens e mulheres não brancos/as que habitam o seu território.
O racismo estrutural está em toda parte, tanto no Brasil, como na Palestina. Se considerarmos que o racismo é estrutural, então deveríamos aumentar a nossa responsabilidade enquanto sujeitos de combater o racismo e os racistas, e, neste sentido, os violadores de direitos humanos da Palestina deveriam ser rechaçados. É preciso dizer didaticamente, sim, que é violência, que é racismo estrutural, que é barbárie o que vivem os palestinos.
É preciso dizer que, onde a lei internacional não chega, a necropolítica chegou, e isso é o que vem acontecendo em Gaza, na Cisjordânia. Considero que um dos caminhos que precisamos construir é rever essa história do povo palestino em cada página de livro, em cada documentário, filme, telejornal. O mundo precisa conhecer o que eles vivenciam.
Palestinos vivem o racismo estrutural, no qual são brutalizados cotidianamente, são cidadãos relegados à segunda classe, a lugar de pessoas abjetas, sem direitos, apenas deveres, em um lugar subalternizado, sem direito a falar. Pode o subalterno falar?, perguntaria Spivak. Não pode, quando se trata de palestinos.
Em 18 de novembro de 2023, o Gracias, Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, que coordeno desde 2010 no Departamento de Psicologia da USP em Ribeirão Preto, em nome do seu Grupo de Enfrentamento à Islamofobia, lançou o 2º Relatório de Islamofobia no Brasil. Nele é possível acessar o que já sabíamos, o evento gatilho de uma violência externa chegando aos muçulmanos no Brasil, de várias formas. Ao perguntarmos se as mais diversas mídias sabem diferenciar árabes, palestinos e muçulmanos, a maioria respondeu “não”. Podemos afirmar que nossa pedagogia dos aspectos culturais, econômicos e sociais, quando se trata do Oriente Médio, é falha, e constrói orientalismos, barbárie, como diria Edward Said, nos quais a prática jornalística se torna cúmplice de informações equivocadas, distorcidas.
É preciso pautar discussões na TV, nos jornais, nos livros sobre o que são os árabes, os palestinos, os muçulmanos, a fim de que o conhecimento vença o estereótipo difundido. Em novembro de 2023, o Gracias promoveu um evento sobre Islã Medieval, pois o conhecimento do Medievo contribui para a formação de cidadãos que compreendem que estamos falando de uma cultura rica e promotora de conhecimento universal, da qual a nossa sociedade se valeu e se vale até os dias de hoje.
A Pedagogia da Palestina nos instiga a saber mais sobre sua história, seus costumes, suas formas de ser e de resistência. Mesmo que matem o último poeta, o último cientista, estaremos aqui, não deixaremos que vozes palestinas silenciem, porque a força do conhecimento ultrapassa muros, checkpoints… e a promoção dos direitos humanos é um dever de cada cidadão no mundo. A paz é imperativa, assim como o conhecimento. Neste momento queria ouvir dos chefes e ministros de Estado e de todos os cidadãos que povoam o mundo:
Palestinos, vocês existem e são valiosos para nós!
Francirosy Campos Barbosa é antropóloga e professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCL) da USP. Autora, entre outros livros, de Islam, decolonialidade e(m) diálogos plurais (Ambigrama) [https://amzn.to/3RmjkHv]
Publicado originalmente no Jornal da USP.