SARA
Como a personagem bíblica de quem
tinha o nome, Sara era demasiado jovem, quando o marido era, já,
demasiado velho. Como a matriarca do Génesis, também Sara não
tinha filhos. E se os desejava! Um, que fosse, e encheria todo o
vazio daquele coração enorme, como o universo. E o do marido.
Tanto, como ela, ele queria um filho. Um filho é, sempre, a garantia
de que a vida de um pai não foi em vão. Por isso, eles queriam um
filho. Tudo, porém, até ali, não fora bastante para consegui-lo.
Nem a juventude, nem a paixão, nem o vigor, nem a persistência,
nem, mais tarde, as promessas, as romagens, as ofertas e as orações,
sempre pedindo a graça de um filho. Durante anos. Quantos? Há muito
que deles perdera a conta. A esperança, não. Mesmo quando, a partir
de um certo dia, o marido começou a evitar pensamentos, palavras e
obras que, de algum modo, pudessem magoá-la (e magoavam), ela
continuou solícita, como até ali, e, em cada dia, mais conformada.
A tal ponto que nem se rebelou, quando teve a certeza de que o marido
(porque era humano e ela continuava a amá-lo), buscara, nos braços
de outras mulheres, antes esquecer um desgosto do que saciar um
desejo. No entanto, tudo aceitando, Sara nada aceitava. Pertinaz,
quase obsessiva, ela recusava admitir que o seu corpo, que fora jovem
e perfeito, por ventura, belo e que ressumara vida por todos os
poros, pudesse acabar, assim, como qualquer ramo seco que, nunca,
abrisse em flor. Quase sem esperanças, esperava. Quase sem forças,
desejava. Quase sem fé, acreditava que, num qualquer recanto de si
mesma, escondia-se, latente, uma força que, por qualquer estranha
razão, não irrompera, ainda. E quase sem sonhos, sonhava.
Foi numa manhã de Abril. Sara acordou,
sorrindo, sem motivo. Levantou-se, cautelosamente. O marido dormia,
ainda. Abriu a janela e, num sopro da brisa, que perpassou, a medo,
ela sentiu que se escondia um certo perfume núbil de laranjeira em
flor. Depois, aninhado num dos braços da acácia do quintal, viu um
casal de rolas que, cabeças unidas, sussurravam segredos, entre si.
Sara fechou a janela e aproximou-se do leito. Sentou-se na cama, com
a maior precaução. O marido dormia, ainda. E, como sempre
acontecia, ela quedou-se, por momentos, olhando-o, em silêncio. Num
gesto impulsivo de ternura acariciou-lhe o rosto, onde as rugas
vinham desenhando vincos. Ele despertou e viu que os olhos verde-mar
da esposa enchiam todo o quarto. Sara continuou a fitá-lo e a sua
mão continuou, meiga, a afagar-lhe a face tranquila. Sorriram ambos.
Um sorriso cúmplice, sem palavras, que, anos de vida em comum e
montes de carinho dispensavam. Foi então que um frémito lhe disse
que aquele gesto de ternura era, de repente, qualquer coisa mais.
Lentamente, muito lentamente, com medo, talvez, de quebrar todo
aquele encanto, Sara inclinou-se e a sua boca procurou a dele.
Tocou-lhe ao de leve, a princípio. Depois, ele descerrou um pouco os
lábios e, no mesmo instante, como uma flecha de fogo, a sua língua
procurou a dele. Desesperadamente.
Dias depois, uma prima, de visita, não
hesitou em comentar: - “Ora, Sara: um bébé? Nas vossas idades? Só
por milagre do Senhor!”
Sara olhou-a, docemente, e pensou,
apenas, “Milagre, sim; mas do amor. Muito amor”.
Cumprido o tempo, pelos fins de
Dezembro, a criança nasceu, enfim. Um menino de olhos glaucos,
verde-mar, como os da mãe.
* Carlos Tomás Cebola – “Contos
Curtos”
IMAGEM - "Maternidade" - Desenho de Cipriano Dourado (1954)