8.11.22

TEXTOS DE ESCRITORES NISENSES - Carlos Tomás Cebola

SARA 
Como a personagem bíblica de quem tinha o nome, Sara era demasiado jovem, quando o marido era, já, demasiado velho. Como a matriarca do Génesis, também Sara não tinha filhos. E se os desejava! Um, que fosse, e encheria todo o vazio daquele coração enorme, como o universo. E o do marido. Tanto, como ela, ele queria um filho. Um filho é, sempre, a garantia de que a vida de um pai não foi em vão. Por isso, eles queriam um filho. Tudo, porém, até ali, não fora bastante para consegui-lo. Nem a juventude, nem a paixão, nem o vigor, nem a persistência, nem, mais tarde, as promessas, as romagens, as ofertas e as orações, sempre pedindo a graça de um filho. Durante anos. Quantos? Há muito que deles perdera a conta. A esperança, não. Mesmo quando, a partir de um certo dia, o marido começou a evitar pensamentos, palavras e obras que, de algum modo, pudessem magoá-la (e magoavam), ela continuou solícita, como até ali, e, em cada dia, mais conformada. A tal ponto que nem se rebelou, quando teve a certeza de que o marido (porque era humano e ela continuava a amá-lo), buscara, nos braços de outras mulheres, antes esquecer um desgosto do que saciar um desejo. No entanto, tudo aceitando, Sara nada aceitava. Pertinaz, quase obsessiva, ela recusava admitir que o seu corpo, que fora jovem e perfeito, por ventura, belo e que ressumara vida por todos os poros, pudesse acabar, assim, como qualquer ramo seco que, nunca, abrisse em flor. Quase sem esperanças, esperava. Quase sem forças, desejava. Quase sem fé, acreditava que, num qualquer recanto de si mesma, escondia-se, latente, uma força que, por qualquer estranha razão, não irrompera, ainda. E quase sem sonhos, sonhava.
Foi numa manhã de Abril. Sara acordou, sorrindo, sem motivo. Levantou-se, cautelosamente. O marido dormia, ainda. Abriu a janela e, num sopro da brisa, que perpassou, a medo, ela sentiu que se escondia um certo perfume núbil de laranjeira em flor. Depois, aninhado num dos braços da acácia do quintal, viu um casal de rolas que, cabeças unidas, sussurravam segredos, entre si. Sara fechou a janela e aproximou-se do leito. Sentou-se na cama, com a maior precaução. O marido dormia, ainda. E, como sempre acontecia, ela quedou-se, por momentos, olhando-o, em silêncio. Num gesto impulsivo de ternura acariciou-lhe o rosto, onde as rugas vinham desenhando vincos. Ele despertou e viu que os olhos verde-mar da esposa enchiam todo o quarto. Sara continuou a fitá-lo e a sua mão continuou, meiga, a afagar-lhe a face tranquila. Sorriram ambos. Um sorriso cúmplice, sem palavras, que, anos de vida em comum e montes de carinho dispensavam. Foi então que um frémito lhe disse que aquele gesto de ternura era, de repente, qualquer coisa mais. Lentamente, muito lentamente, com medo, talvez, de quebrar todo aquele encanto, Sara inclinou-se e a sua boca procurou a dele. Tocou-lhe ao de leve, a princípio. Depois, ele descerrou um pouco os lábios e, no mesmo instante, como uma flecha de fogo, a sua língua procurou a dele. Desesperadamente.

Dias depois, uma prima, de visita, não hesitou em comentar: - “Ora, Sara: um bébé? Nas vossas idades? Só por milagre do Senhor!”
Sara olhou-a, docemente, e pensou, apenas, “Milagre, sim; mas do amor. Muito amor”.

Cumprido o tempo, pelos fins de Dezembro, a criança nasceu, enfim. Um menino de olhos glaucos, verde-mar, como os da mãe.

* Carlos Tomás Cebola“Contos Curtos”
IMAGEM - "Maternidade" - Desenho de Cipriano Dourado (1954)