20.11.22

TEXTOS DE CRUZ MALPIQUE: Retrato do Homem Culto (I)

MAIS do que de conhecimentos, a cultura é feita de bons hábitos de pensamento e de inteireza de carácter (1). No sentido em que tomamos a palavra cultura a mera circunstância de um homem saber mundos e fundos não garante que seja homem culto. E muito menos quando é mau carácter. A cultura fará que nos acorra sempre ao espírito a ideia de uma superioridade - quer como inteligência criadora e na posse de conhecimentos bem estruturados, quer com carácter que possua como linha mestra as virtudes peculiares à sageza. Sem estes requesitos poderemos estar na presença de um bárbaro com muitos conhecimentos, mas nunca - por nunca - na presença de um homem culto (2).
É um homem culto aquele que, de uma só vez, possui visão filosófica do mundo, conhecimento exacto da sua situação social, personalidade bem vertrebrada, que timbra em passar de humanus a humanior, propelido por infatigáveis desejos de perfeição pessoal, e que se interessa pelo bem da comunidade como se fosse o seu próprio.
Ser culto - no sentido integral desta palavra - não implica necessàriamente que o homem seja sábio. Sem sombra de paradoxo, podemos dizer que existem sábios incultos, e homens cultos que estão longe de ser sábios. É que a cultura autêntica, como atrás dizemos, implica mais alguma coisa do que a elevação de nível intelectual - implica elevação integral, de corpo e alma. Não é culto o bárbaro moral. Não o é, tampouco, aquele que descura o «irmão corpo» e a educação da afectividade, que lhe permite vibrar com as criaçãos artísticas, com as belezas da verdade, com o inefável distingido da pura contemplação da paisagem
Se o saber - o simples saber - não é cultura no amplo significado que lhe estamos dando, também não devemos equacionar grau de civilização com grau de cultura. Civilização e cultura situam-se em planos diferentes. Enquanto a civilização se traduz, principalmente, em comodidades materiais- filhas das aplicações prácticas da ciência, e, portanto, da técnica,- a cultura associamo-la, sobretudo, a riqueza de vida interior, e aos conceitos que o homem forma da sua vivência e convivência social. A cultura mira fundamentalmente a dignificação integral do homem. Dá prioridade à qualidade sobre a quantidade(3).
NOTAS
(1) Foi Montaigne quem escreveu, no seu francês arcaico: «le gaing de notre estude, c'est d'en estre devenu meilleur et plus sage».
(2) A cultura está menos na quantidade do saber do que principalmente em certas qualidades de espírito - a finura moral sobretudo, equivalente de sageza. Os italianos do Renascimento, por pouco sabedores que fossem, eram mais cultos do que suecos de nossos dias - todos eles com a instrução primária.
(3) Está fazendo a sua cultura (como quem diz a sua educação) aquele que diligencia por elevar as suas forças interiores. Na cultura entra a ciência, o saber. De certo, Mas o que ela é, essencialmente, é sageza. Mais do que infromação, a cultura - no sentio amplo que lhe estamos dando - é fromação. Formação da personalidade. Na cultura a qualidade tem primado sobre a quantidade. Que a quantidade é considerada de somenos importância ressalta da definição quase paradoxal, de cultura, dada por alguém: o que nos fica depois de termos esquecido tudo quanto havemos aprendido...
* Cruz Malpique in "Uma Filosofia da Cultura- Aspectos Pedagógicos" - 1962 -Livraria OFIR