Durante a primeira metade do século XX, Dionísio da Piedade
Cebola foi uma das figuras mais populares, senão mesmo carismática, da vila de
Nisa.
Casado com Emília da Cruz Bicho, de quem teve dois filhos,
José Dinis e João Augusto, muito cedo enviuvou; voltou a casar com Maria José
Zacarias.
De forte compleição física, de gesto aberto aos
cumprimentos, altruísta por natureza, foi uma pessoa virada para a amizade e
para a alegria.
A Troupe Jazz “ Os Fixes “ foi a bandeira comunicativa do
seu perfil psicológico, com a sua inseparável viola – banjo.
Pertencente à confraria de Dionysos, grego, ou de Baco,
romano, tanto fazia; se bem gostava do branco, melhor bebia do tinto.
Vizinho da Igreja Matriz, foi seu sacristão. Lembrava-se de
usar uma opa encarnada e, na Quaresma, uma roxa, de ajudar à missa em latim com
seus tempos de genuflexões e de mudar o missal do lado da Epístola para o lado
do Evangelho. Possuía uma especial acuidade auditiva e distinguia o significado
do toque dos sinos: matinas, missa, casamento, baptizado, anjinho, enterro, sinal
de ano e trindades. Os quatro sinos tinham nome; lembro o Castelhano e a
Campainha, virados a nascente. À Elevação, tinha que haver sincronismo entre o
tinir da campainha, no altar, e o toque dos sinos, na torre. Nos dias em que
sobressaía o som da Campainha, era sinal de anjinho. Logo apareciam expostos os
caixotes de palmitos a cinco tostões ou, só a rosinha branca, a dois tostões, à
porta das lojas dos senhores João Mendes e João Rosa, no Largo da Porta da
Vila, nº 15 e 18, respectivamente.
Meu avô tinha a sua oficina de sapateiro na casa onde vivia,
na Rua Direita, nº 12. Na loja trabalhavam oficiais, pagos à semana, e
aprendizes que recebiam gorjeta pela entrega do calçado ao domicílio ou em dia
festivo. O estatuto de oficial só se atingia com cinco anos de aprendiz. A
disposição dos lugares na loja obedecia a certas regras. Havia hierarquia. À
roda de pequenas mesas, sentava-se o mestre frente aos oficiais e de permeio os
aprendizes. O mestre tinha o privilégio do melhor lugar, junto à janela, com o
fim de não escapar algum bom-dia ou boa-tarde, a transeunte da Rua Direita.
Nesse tempo, esta zona urbana era a mais frequentada de
Nisa, quer pelas inúmeras oficinas de sapateiro e de carpinteiro, tabernas e
demais lojas, quer sobretudo pela afluência de pessoas aos serviços, tais como,
a Câmara e as Finanças e suas Tesourarias, as sessões no Tribunal, a Igreja e o
Hospital da Misericórdia, o Asilo de Nossa Senhora da Graça e ainda a Fonte da
Praça, onde se bebia a cristalina água da Galiana ou se enchiam os cântaros
pedrados, por vezes, com formação de bicha à sombra do frondoso plátano.
Das conversas com meu avô resultava, com frequência, o
freguês ou o amigo serem convidados a visitar o seu mundo de coelhos, de pombos
e de rolas.
Começava-se pela coelheira.
Acabara de apalpar a barriga da coelha preta e contara cinco
coelhinhos. Era altura de arranjar uma loura de um caixote de barras de sabão,
porque a gestação do mês estava no fim, e tinha de ir apanhar um punhado de
leitugas ao Chão da Fonte da Aluada.
Seguia-se o pombal.
A pomba põe o primeiro ovo das quatro para as cinco da tarde
e dois dias depois, passado o meio-dia, põe o segundo. A incubação dura cerca
de dezoito dias. Cada postura pode gerar dois machos ou duas fêmeas. É casal
quando os pelachos estão posicionados, no ninho, em sentidos opostos.
No pombal, o “ Fabri “ era a vedeta; este pombo chegou a ser
largado de Coimbra, com escritos numa mortalha de cigarro, enrolada à anilha da
Columbófila de Nisa de que meu avô era sócio fundador.
O pombal tinha o “ esqueleto “ que era uma gaiola montada no
telhado para evitar a entrada de gatos e para apanhar pombos da vizinhança, ao
chamariz de grãos de milho lançados a jeito. O que nunca tinha conseguido
apanhar, dizia, tinham sido pombos-cambalhotas que passavam o dia inteirinho no
cimo da torre (a que não tem sinos). Esta raça de pombos era única em Nisa e
pertencia ao sr. Júlio Frade, morador paredes-meias com a Torre do Relógio.
Subia-se à varanda.
Neste patamar da visita, havia três gaiolas de casais de
rolas penduradas na parede e uma gaiola grande, ao canto, onde coabitavam rolas
mansas e bravas, pombos bravos com asas derreadas, vindos das caças de espera
do Mato da Póvoa e do Azinhal, e um coelhinho bravo, apanhado à mão nuns juncos
à Fonte da Cruz.
Como epílogo, por debaixo da latada, uns papa-ratos ainda
quentinhos serviam de lastro a uns copinhos de vinho branco do sr. Sambado que
tinha a adega na casa frente à Igreja Matriz.
O gosto de meu avô pelos animais já vinha de longa data.
Há cerca de cem anos, ainda havia um chabouco a poente do
edifício da escola primária. Contava meu avô que tinha uns patos que ali
passavam muito tempo e que iam e vinham para a sua capoeira.
Então comparava o que cinquenta anos depois acontecia com um
rolo que tinha criado, resultante do cruzamento de um rolo bravo com uma rola
dita da Índia (a fêmea brava não procria em cativeiro) e que ia às areinhas ao
Jardim Municipal, sob a vigia do Ti Luís (Jardineiro). Este rolo chegava a ser
largado do recinto de Nossa Senhora da Graça. O pobre do rolo acabou nas garras
de um gato, ao entrar na gaiola da varanda.
Durante anos, as freguesias tinham um regedor cujas
atribuições do cargo eram, por vezes, postas à prova. Contava meu avô, regedor
da freguesia de Nossa Senhora da Graça que, um dia, em final de romaria de
Nossa Senhora dos Prazeres, dois festeiros envolveram-se em grande sessão de
pancadaria. O regedor da freguesia do Espírito Santo deu voz de prisão a um
deles, mas constou logo que o dito preso pertencia à freguesia de Nossa Senhora
da Graça. Foi o suficiente para meu avô intervir e dar ordem de soltura ao
aprisionado. Restou-me saber se, no final da discussão, não teriam ido os
quatro beber um copo na barraca mais próxima.
Em casa de meu avô, às segundas-feiras, aguardava-se a
chegada do correio com os “Brados do Alentejo “, jornal estremocense que
veiculava notícias do seu amigo Dr. António Garção, médico municipal, residente
no Cano (Sousel).
Certo ano, o Jazz firmara contrato em ir abrilhantar os
bailes de Carnaval ao Cano. O problema com os transportes era difícil de
resolver por ser Domingo Gordo. Então, meu avô manda avançar o grupo para a
paragem das camionetas e, num ápice, antes das nove horas, sai Rua Direita
abaixo, bebe um copo de cinco no Henriques Esteves e, direito ao Dafundo, no
Adelino Rascão, ainda o espera outro copo, agora acompanhado de uma sandes de
atum (especialidade da casa). Já acelerado na Estrada das Amoreiras, passa à
Curva da Morte e caminha até ao Alto de Palhais (a 2,5km) onde aguarda a carreira.
Pouco espera. Chega a típica camioneta de cores encarnada e branca e, ao sinal
de meu avô, pára. Ao entrar, logo abraça o Laurentino, o cobrador, a quem
promete um copo em Fronteira (paragem para o almoço) e toca a ocupar um banco
de dois lugares com a viola e outro com o estojo. A lotação estava assegurada.
Chegados a Nisa, era uma chusma de gente para embarcar. O Jazz seguiu viagem e
várias pessoas ficaram em terra.
A paragem das camionetas da Empresa Martins, concessionária
das ligações Castelo Branco – Évora, situava-se em frente da actual Estação dos
C.T.T., com horários às dez e duas e meia.
Frente a um programa de festas, meu avô comentava:
Às 8 horas – Alvorada pela Banda Municipal de Nisa (“É prá
gente”)
Às 10 horas - Sessão de boas-vindas nos Paços do Concelho
(“É p´ra eles”)
Às 11 horas – Missa solene na Igreja Matriz (“ É p´ra elas”)
Às 13 horas – Almoço (“É p´ra eles)
Às 16 horas – Procissão com o andor de Nossa Senhora da
Graça (“ É p´ra gente”)
Que genuíno humor!!!
Arthur Odorico da Costa Raposo, chefe da Tipografia Borges
Henrique que funcionou no local onde hoje é a garagem do prédio nº 9 da Praça
da República, editou um opúsculo, em 1 de Dezembro de 1951 – Os Casamentos em
Nisa – do qual transcrevo:
“Entre as pessoas presentes,
há sempre alguém que se salienta mais, e, nesses casos está um sapateiro por
ofício, músico nas horas vagas, excelente pessoa, estimadíssimo por todos, o
qual atrai sobre si as vistas dos outros convivas, já pela sua apresentação
alegre e folgasã, já pelas graças ditas a tempo e a propósito, já e ainda, pela
sua movimentada actividade – transportando peças de carne, mexendo uma ou outra
caçoula, onde a comida ferve, quer atiçando o lume, desta ou daquela fornalha,
dando palmadinhas amigáveis aos presentes, saudando ruidosamente os amigos que
chegam; numa palavra: é o grande – direi mesmo – o indispensável e exímio
fomentador do riso, da alegria, em festas desta natureza, é ele,
incontestavelmente, só por si, meia festa!” (pág. 23)
É ele, meu avô, Dionísio da Piedade Cebola.
Dionísio Cebola - in "Jornal de Nisa" nº 246 - Janeiro de 2008
Fotos- 1 - Com a segunda mulher e filhos
2 - Com o grupo jazz "Os Fixes"
3 - Na varanda, com outra das suas paixões: os pombos
4 - Dionísio da Piedade Cebola