6.12.18

ESCRITORES DE NISA: Barbos do Figueiró - Carlos F. Figueiredo

(Qualquer semelhança com figuras supostamente reais é mera coincidência.)
Um dia, hei-de trazer-te a história de quando o sol se pôs por detrás das nuvens da vida de um homem que não vejo há muito, muito tempo (não sei se já morreu) e se chamava Alberto Diniz, campeão de ilusões, sonhador de astros, rei da pureza e do sol, amante da lonjura transparente e alentejano de raiz.
Ah!, o Alentejo, a mística perfumada de Florbela, a menina louca de saia-calça no liceu, com os seus laçarotes rubros nos pompons negros, dançando ao bafo quente do suão. Ela, a ânsia de plenitude! O pássaro que voa bem alto e lhe quebraram as asas, e silenciosamente morre, espetando o bico em sangue na terra revoltada.
Sim, acho que esse tal que eu tão bem conhecia e se chamava Alberto Diniz já morreu e só viveu a primeira vida. Porque uma vida tem várias vidas. Sabias, meu amor?
Encontrámo-nos um dia, nos bancos da escola, eu e o Alberto. Éramos francamente maus alunos. Sempre distraídos. Mas ele, lembro-me bem, já lia livros do Campos Júnior e embirrava de morte com os problemas das peras e dos feijões.
O professor, esse, tinha um grande nariz, rubicundo e adunco como o monco de um peru. Quando se assoava, aí tomávamos atenção. Um estrépido de ranho ecoava na sala, nós bem alerta (!) e depois um esganar do lenço de cores vivas prá direita e prá esquerda, e a enorme penca de borracha ao meio, com ratador e regueiras fundas de bexigas a toda a volta. Chamávamos-lhe o “Barbo” por ser pescador nas invernias e gostar de mamar numa borracha espanhola de aguardente, enquanto pescava. Deitava as linhas e emborrachava-se (o malandro!) e sonhava depois, sonhava com fortes picadas de grandes peixes, violentas como a virulência das cargas de água que lhe desabavam em cima do chapeirão preto de abas derreadas, grande e tosco chapéu com algerozes...
Tinha umas mãos enormes, mas flácidas, sem calos, encarnadas das frieiras, com as pontas dos dedos amarelos e as unhas negras dos terríveis “Provisórios”.
Ah! Aqueles cigarros! A admiração que nós tínhamos por ele fumar os “Provisórios”, uns atrás dos outros! E a puxar o fumo? Caramba!...
Cada chupada! Cada uma, logo meio cigarro! Fumar “Provisórios” não era para qualquer um homem, não, que aquilo não era tabaco mas trotil, pior que pólvora. E ao deitar fora o fumo? Hum! O narigão botava, então, duas chaminés. Prolongadamente, gostosamente, o fumaréu saía, azulado, desenhando arabescos ao contra-luz, rabiscando voltas, enquanto uma voz pachorrenta e grave nasalava:- Sabem que dia é amanhã, seus cabeças de sebo?
- É o São Martinho, é o São Martinho...! – gritavam vozes frescas.
- Que grande santo! É o maior, é o maior! Amanhã é feriado, para nós vai ser feriado, ouviram seus bolas de sabão? Ouviram bem? É dia de eu deitar uns bons bagos de milho aos barbos do Figueiró.
Carlos F. Figueiredo (inédito)
- Excerto breve da crónica-romance inacabada “Estrada da Erosão”