Ir ao campo de concentração do Tarrafal devia fazer parte da
vida escolar em Portugal.
O 25 de Abril está cheio de passado, foi uma revolução sem
sangue depois de séculos de sangue. Também por isso está cheio de futuro. Com
ele caminhamos.
1. Esta crónica esperou desde 4 de Novembro passado. Foi a
manhã em que subi pelo interior da ilha de Santiago, até ao antigo Campo de
Concentração do Tarrafal. Havia anos que esperava fazer isso, nunca tinha
estado lá. Estive noutras ilhas de Cabo Verde há quase 20 anos, e bem antes
disso quase nasci na Ilha do Sal. Se o mar muda algo ao longo de nove meses de
gravidez, esse foi o Atlântico que primeiro engoli. Vim nascer a Lisboa, seis
anos depois aconteceu o 25 de Abril.
Foi por isso que a crónica esperou desde Novembro. Quis
escrever sobre a ida ao Tarrafal na semana em que festejamos esta revolução,
cada vez mais preciosa. Uma das mais inspiradoras revoluções da história
moderna, libertando vários países, além de Portugal. Devemo-la à luta de muitos
homens e mulheres, e a grandíssima parte dos que morreram nisso era africana. O
25 de Abril está cheio de passado, foi uma revolução sem sangue depois de
séculos de sangue. Também por isso está cheio de futuro. Com ele caminhamos.
2. Sobre o campo do Tarrafal, há livros de memórias,
pesquisas, teses, reportagens, o grande documentário de Diana Andringa,
“Memórias do Campo da Morte Lenta”. Aqui, falo apenas da minha experiência lá,
e do que a moldou. Cada português terá a sua própria história do Tarrafal, seja
memória de família, impressão histórica, visita, ou tudo isso. Mas a visita não
é substituível, tal como é impossível perceber mesmo o que é o Muro da
Palestina sem ir lá (para me ficar por algo de simples acesso, ao contrário de
Gaza). Eu gostaria que o Tarrafal fizesse parte, fisicamente, da vida escolar portuguesa,
porque há uma dimensão de experiência que só existe lá. Além de ser história
viva de Cabo Verde (e de Angola, e da Guiné), é uma parte importante do que
foi, é e será Portugal. E se Portugal deixar para trás o que significa o
Tarrafal está a desistir de um futuro em que trazemos connosco os mortos,
tentamos ser um pouco mais com eles e por eles.
Não há soluções em massa para a
história não se repetir. Os humanos têm uma capacidade infinita de dar cabo de
si mesmos, das restantes 8,5 milhões de espécies e do próprio planeta. Mas
muitas diferenças somadas fazem diferença, cada um implicar-se faz diferença. Estar
no Tarrafal, em última instância, passa por isso. Implicarmo-nos fisicamente,
juntar o corpo àquela história, pô-lo dentro daquelas celas, da mais pequena,
escura, sufocante, cercada de montanhas secas, no meio de uma ilha, no meio do
Atlântico. Reconhecer que aquele escândalo é o nosso escândalo. Que se estamos
vivos aquilo tem a ver connosco, e vividamente terá se somos portugueses.
Porque o Tarrafal não é apenas uma prisão, nem apenas uma prisão política. O
Tarrafal foi um campo de concentração excepcionalmente isolado que Portugal
manteve ao longo de décadas do século XX. Numa primeira fase (1936-56), para
portugueses anti-fascistas. E numa segunda fase (1962-1974), para mais de duas
centenas de angolanos, guineenses e cabo-verdianos que lutavam contra o
colonialismo português. Quem assinou a portaria, a 17 Junho de 1961, para a
reabertura do Tarrafal, ou seja, quem liderou a sua ressurreição na segunda
fase, foi Adriano Moreira, então ministro do Ultramar. Quando há uns anos, incrivelmente no Dia Internacional
dos Direitos Humanos, a Universidade do Mindelo lhe deu um doutoramento
honoris, houve protestos em
Cabo Verde e Moreira negou ser ele o responsável. Mas
comprovou-se que a assinatura é dele. Está reproduzida no Tarrafal, vi-a como
toda a gente pode ver. Todo um caso, Adriano Moreira. Alguém que fortaleceu de
várias formas a ditadura salazarista, incluindo actos que significaram violências
terríveis, e tem sido cumulado dos respeitos da democracia, como sábio emérito.
6. A “Holandinha” sobreviveu, ao lado da cozinha, disfarçada
numa arrecadação, por causa das inspecções ao campo. Luandino nunca aqui
esteve, diz que nem sabia da “Holandinha”. A Cruz Vermelha também não, quando
veio visitar o campo. Era a cela de castigo, sucessora da “Frigideira”. Quem
vem do pátio, abre uma porta, como para uma divisão normal, e lá dentro há um
paralelepípedo de cimento, com uma grade minúscula. Entro nesse paralelepípedo,
e fecho a porta. O tecto está imediatamente acima do meu cabelo. Não consigo
abrir os braços em todas as direcções porque não há espaço. Não há espaço, não
há luz, mal há ar. Não é possível fazer nada, a não ser ficar quieto em pé,
acocorado, ou dobrado no chão. Não é possível imaginar o que alguém sentiria
com a porta trancada, sem saber quando ou se sairia daqui. Como se sobrevivia
um dia, quanto mais cem aqui dentro.
3. No momento em que vim nascer a Lisboa, um dos homens
mais fascinantes que eu haveria de cruzar na vida estava não apenas preso no
Tarrafal, como desesperadamente preso no Tarrafal, mesmo que ninguém notasse o
desespero. Quem o conhece sabe como será difícil saber o que lhe vai na alma.
Falo do angolano Luandino Vieira. A primeira longa conversa que tive sobre o
Tarrafal foi com ele, quando aceitou dar enfim uma entrevista sobre os oito
anos que passou lá, de 1964 a
1972. Essa entrevista saiu em 2009 no “Público”, reli-a agora, é lá que
Luandino conta como 1967-1968 foram os anos negros, em que temeu nunca mais ser
livre. Mas parece haver um espantoso apaziguamento em toda a memória dele; um
foco no não-ressentimento, nem sequer em relação aos directores do campo; na
força que retirou de tudo aquilo para a luta posterior, em tudo o que criou
no/com o Tarrafal, incluindo vários livros. Não por acaso, Luandino terá
esperado tanto para falar do Tarrafal. Como ele mesmo diz, a memória constrói,
então o que está nesta entrevista é a construção da memória. Como a vontade
humana pode ser férrea, na metáfora e à letra: ver num amendoim o suplemento de
ferro, tirar vida de quase nada.
E não havia forma de parte dessa memória não viajar
comigo, naquele carro com uma santinha no tablier, Ilha de Santiago acima, dia
4 de Novembro de 2017. Foi ao longo dessa viagem de carro que julguei entender
o que há de western no monumental Ventura, actor cabo-verdiano de Pedro Costa,
sobretudo nos filmes “Juventude em Marcha” e “Cavalo Dinheiro”. Porque o
interior da ilha é um western monumental, com índios monumentais subindo e
descendo montanhas a pé, dia a dia.
4. Então os desfiladeiros, os vales, os picos acabam e
aparece uma placa na estrada a dizer “Museu Campo Concentração”. É bem cedo de
manhã. Estou na ilha a convite de um festival literário, mais tarde haverá uma
visita organizada ao Tarrafal, mas a esta hora, vindo por minha conta desde a
Cidade da Praia, não vejo nem ouço ninguém no acesso ao campo. Uma placa na
parede diz que o Museu do Campo de Concentração do Tarrafal abriu no dia 20 de
Janeiro de 2016, na presença dos primeiros-ministros de Portugal e Cabo Verde.
O chão é de terra sequíssima, e os painéis do museu estão colados em painéis de
madeira cá fora, em português e inglês. O primeiro resume as duas fases do
campo e o contexto da ditadura portuguesa, o segundo explica que a escolha do
lugar não foi ao acaso. O império português usou Cabo Verde como país de
degredo desde que “achou” as ilhas, e a escolha deste lugar teve a ver com o
isolamento, a facilidade de vigilância e a aridez desoladora, que deveria
contribuir para o abatimento dos espíritos aprisionados. Nos anos 1930 em que o
campo é criado, o concelho do Tarrafal tinha 20 mil pessoas (2 por cento
brancos), uma taxa de analfabetismo de 88,1 por cento, 91,66 entre os negros.
Não havia um só médico, apenas uma enfermeira. As crianças morriam de tétano e
gastroenterites. Caminhava-se cinco horas até achar uma nascente de água.
Durante quatro séculos não houvera Estado, o concelho fora criado havia pouco.
Era isto o épico império português. E neste fim de mundo haveriam de penar os
adversários do regime.
Avanço ao longo da muralha que cerca o campo, como numa
fortaleza. Entra-se por um torreão com um arco. O discreto museu prossegue,
numa lógica de circuito, painel a painel. No painel que se segue, um mapa de
todo o complexo, assinalando as casas dos guardas, a enfermaria, as celas dos
presos de delito comum, as dos cabo-verdianos, a dos guineenses e a dos
angolanos, separados de modo a travar uniões, passagem de informação. Cozinhas,
latrinas, oficinas, refeitório, sala de leitura, lavandaria, toda uma
organização. E a “holandinha”, a cela de castigo. Lá chegaremos.
O que não sobreviveu, mas existiu e está aqui uma
réplica, foi a “Frigideira”, um paralelepípedo de betão com duas divisões e uma
pequeníssima grade no topo, para entrar ar. Aqui “fritaram”, na torreira do
sol, muitos anti-fascistas, comunistas, socialistas. Edmundo Pedro, por
exemplo, passou 70 dias lá dentro, despido, sem botas nem protecção para os
insectos. Houve quem passasse 135 dias. Ao todo, o museu contabiliza 2824 dias
passados na “Frigideira”. Não era Auschwitz, contou Edmundo Pedro nas suas
memórias, mas era com certeza um campo de concentração e não uma “colónia
penal”.
5. Do grande pátio, avistam-se as montanhas castanhas a
toda a volta, cercando a fortaleza. Era esta a paisagem diária. Em volta do
pátio, um fosso. Os pavilhões das casernas são compridíssimos, janelas sem
vidro, com grades. Ao fundo, a latrina, os lavatórios, os duches, tudo aberto.
Não havia privacidade. Havia sempre vento. Guineenses e angolanos estavam
colados, davam para o mesmo pátio, mas não se cruzavam. Nesse pátio há umas
grandes árvores, reconheço a acácia-rubra, a outra é uma purgueira, diz-me o
jovem guia do museu, que também é poeta e se chama Mário Loff. No muro estão
painéis com o nome de todos os presos que aqui estiveram. O que lá não está,
mas Mário explica, é que era debaixo destas árvores que Luandino escrevia, no
recreio.
Luandino tinha uma máquina de escrever quando chegou ao
campo, mas ficou confiscada por anos na secretaria. Então escrevia à mão em
caderninhos de linha, que vinham com as compras autorizadas, entre a pasta de
dentes Couto e o sabão Clarim. Tinha os cadernos de anotar “os erros mais belos
da língua portuguesa”, 24 cadernos com as palavras que ia ouvindo aos outros
presos, muitos deles analfabetos. E tinha os outros cadernos, onde chegou a
escrever livros inteiros. Tudo o que escreveu conseguiu passar para fora da
cadeia, num incrível estratagema de amizade com a senhora que ia lá vender
leite da sua única vaca. Luandino escondia os escritos no fundo de um cesto de
milho, que lhe dava de presente. Os guardas nunca desconfiaram, e quando
Luandino saiu em liberdade condicional, em 1972, a senhora do leite
guardara todos os cadernos.
O museu não teve a tentação, e ainda bem, de alindar as
celas. As paredes estão sujas, riscadas, com nomes e anotações. As latrinas,
uma ruína. As grades ferrugentas. A lavandaria, cheia de entulho a céu aberto.
Tudo batido pelo sol que jorra. E isto é Novembro.
Junto ao posto médico há uma lápide com o nome dos 36
presos que aqui morreram, desde 1937
a 1970. São 32 portugueses, dois angolanos, dois
guineenses. A biliosa, causada pela picada de um insecto, era a principal causa
de morte. Numa parede, há uma citação do médico do campo, Esmeraldo Pais da
Prata: “Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito.”
A comida era tão má que os presos tapavam as narinas com
bolas de pão para conseguirem comer.
É impossível, de facto, pormo-nos no lugar de quem aqui
esteve dentro. Mas também é impossível não ver o império português, porque é
isso que aqui está.
7. Quando volto ao pátio principal, um alegre bando de
talvez uns 30, camisa de uniforme cor-de-salmão, vem a entrar. São alunos da
Escola Secundária de Chão Bom, a povoação vizinha, vêm com a professora
Natércia Soares, e com eles gritos, risos, corridas. O campo da morte lenta
cheio de vida. A ideia é que os escritores portugueses sejam recebidos por eles
daqui a pouco. Mas, para já, sou a única branca, a única portuguesa, e falam
português comigo, mas entre eles, crioulo. São tão jovens que os pais já nasceram
depois da independência, o 25 de Abril é coisa dos avós. Muitos terão parentes
emigrados em várias partes do mundo, Portugal à cabeça. Lá como cá, a promessa
dos avós continua por chegar.
Gostava de ter as notas do que conversámos, mas perdi-as
porque estupidamente não estavam em papel. Só sobreviveu o email da professora,
através da qual hoje voltei a contactar Mário, o guia poeta.
Luandino ensinou no Tarrafal, como muitos dos presos,
quem sabia algo, ensinava. Ele dava aulas de primária. E um dos livros que aqui
leu, e usou nas aulas, foi o “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa,
um romance que não se parece com nada do que existia antes nem veio a existir
depois. No Tarrafal, estavam presos analfabetos e intelectuais, pais e filhos,
gente de todas as profissões. Alguns dos que andavam na primária com Luandino
acharam tão bonitas as frases do “Grande Sertão” que as diziam em voz alta.
Isso aconteceu aqui, neste campo de concentração.
E quando hoje escrevi a Mário, o
guia poeta do Tarrafal, ele contou-me que ainda este ano vai publicar um livro.
Alexandra Lucas Coelho in "Público" - 20/4/2018