Só, com uma chave na mão:
Quem é que brinca contigo?
Quem é que pede perdão?
O meu menino é de ouro. Pai, mãe, avó ou avô para cada um o
seu menino é de ouro.
Quando nasce, aquele choro lindo, aquele sorriso lindo.
Quando gatinha, que lindo é. Quando palra, que lindo é o
menino.
Quando faz tem-tem, e dá os primeiros passos que lindo é o
menino.
E o menino cresce. Vai à escola o nosso menino, que lindo é
o menino.
Que emoções desperta, na mãe que o adora, no pai que nele se
revê, na avó e no avô que choram só de olhar para o seu menino.
Quando for grande o nosso menino vai ser... porque o nosso
menino é de ouro.
Que emoções desperta o menino adolescente, que até há quem
dele se apaixone.
Desperta emoções o menino. Mas, e as suas emoções?
O menino, os nossos meninos têm emoções, e crescem com elas,
e constroem-se com elas.
As suas emoções surgem em cada instante, no contacto com os
familiares e com o mundo que o rodeia. Mundo que começa por ser o berço e o
colo da sua mãe, mas que rapidamente se alarga a um espaço muito para além da
casa, da rua, da vila, da cidade.
Porque gosto disto ou daquilo? Porque me sensibilizo a ver
isto? Porque me irrito ao presenciar aquilo? Porque me culpabilizo? Emoções,
não se aprendem na escola. Mas quando reagimos desta ou daquele maneira, são as
emoções que nos comandam.
Quando os meninos crescem e se tornam homens e mulheres, lá
continuam as emoções a surgirem e a mostrarem-se em atitudes sensíveis ou
insensíveis muitas vezes não controladas pelo lado racional, socializado pela
vida em colectivo.
O nosso menino é de ouro mas vive num mundo de lata, que lhe
desperta as mais desencontradas emoções.
A lata que nos dá a informação do mundo, mostra-nos
diariamente cenas de guerra depois de discursos falando de paz e bem-estar.
A lata que nos mostra o mundo diz-nos que a vida colectiva
deve ser solidária. Mas mostra-nos que a sociedade que vende em supermercados
latas de comida para cães e gatos é a mesma sociedade que convive com gente que
morre de fome e doença.
As latas que nos mostram o mundo, dizem-nos que milhões de
meninos e de homens que não puderam ser meninos vivem do lixo, ao mesmo tempo
que outros milhares correm para estádios para aplaudir méis dúzia de homens ou
mulheres que fazendo algumas habilidades ganham fortunas.
As latas que nos mostram o mundo, exibem despudoradamente o
lado feio da vida dos meninos de ouro sem nada, ao mesmo tempo que mostra o
lado bonito de outros meninos de ouro com tudo.
As latas que nos mostram o mundo, apresentam concurso em que
a ignorância é recompensada com carros, ouro e milhares de contos e depois
informa que quem estudou está desempregado.
As latas que mostram o mundo, exibem festas de gente
habilidosa que engana, trapaceia, ludibria e enriquece e a seguir mostra-nos
bairros desgraçados com meninos a brincar em esgotos.
As latas que nos mostram o mundo, mostram alarvemente carnes
apetitosas de mulheres, depois das moscas pousadas nos lábios de meninos a
morrerem à fome e antes de cenas de matanças de homens esventrados e decepados.
As latas que mostram o mundo, mostram tudo isto à hora das
refeições. Com a família reunida. Com os nossos meninos de ouro à mesa.
Que emoções despertam?
Todos nós temos ou tivemos os nossos meninos de ouro, que
cresceram com as suas emoções.
Uns aprendem a conviver com as emoções, outros não.
E, quando alguns meninos não racionalizam as suas emoções e
se tornam uma ameaça para a sociedade, lá estão as latas que mostram o mundo a
fazer discursos sobre o porquê, depois de uns anúncios de detergentes e antes
de um filme violento com direito a bola vermelha no canto superior direito.
Os nossos meninos de ouro têm emoções e nós também.
Saibamos viver com elas na sociedade que, para o bem e para
o mal, vamos construindo...
Zé de Nisa – Jornal de Nisa – nº 73 – 20 Dez. 2000