26.12.15

Poesia social do Alentejo (2)

A Enxada
Fui nova, cortante enxada,
Desbravei, cavei o chão;
Fui sucata abandonada,
Agora ando num canhão.

Quase me lembro de ser
A pedra de mineral,
E lembro a luta fatal
Do braço para me colher.
Levaram-me a derreter,
Fui em ferro transformada,
Fui, depois, à martelada,
Numa bigorna estendida,
Deram-me a força devida,
Fui nova, cortante enxada.

Comprou-me um moço possante,
Pôs-me um cabo de madeira,
E lá vou na segunda-feira
Nos braços desse gigante.
Desde esse dia em diante
Foi a minha profissão
Desbravar terras de pão,
Relvas, vinhas, olivais.
Vinte anos, talvez mais,
Desbravei, cavei o chão.

Começava de manhã,
Sempre em luta vigorosa,
Mesmo em terra pedregosa
Cada vez com mais afã.
Resisti, enquanto sã,
A poder ser consertada.
Já rasinha e dilatada,
Deixei de ser ferramenta,
Fui para o canto, ferrugenta,
Fui sucata abandonada.

Passei anos sem valor,
Com velhos ferros como eu,
Até que um dia apareceu
Lá por casa um comprador.
Meteram-me num vapor,
Fui a nova fundição.
Por meu destino ou condão
Nunca mais cavei na terra;
Mandaram-me para a guerra,
Agora ando num canhão.
Manuel António Castro