20.12.11

À FLOR DA PELE - Adeus, até ao meu regresso...

Menina dos olhos tristes
O que tanto a faz chorar
O soldadinho não volta
Do outro lado do mar (1)
Onde se fala do annus horribillis do salazarismo, do início da guerra colonial, da queda de Goa, Damão e Diu, do princípio da derrocada do Império Colonial Português, da dor e das lágrimas de uma mãe de Tolosa, sem dinheiro para pagar a “caixa de pinho” e trazer de volta, o filho morto em combate...
23 de Janeiro de 1961. Foi há 50 anos e ainda me lembro do rádio a pilhas, em cima da secretária, na sala de aula do 1º andar da Escola do Rossio. O professor, meu primo António da Piedade Pires, ligava-o a espaços para ouvirmos a “aventura” em forma de novela radiofónica do assalto ao Santa Maria. O ano começava mal para o regime salazarista e num país onde só era permitida uma ideologia política, onde não se podia discutir, sequer, o “sexo dos anjos”, aquelas doses maciças de apologia nacionalista e de constantes alusões aos “traidores da pátria” comandados por Henrique Galvão calaram bem fundo em cada um de nós.
Naquela altura estaria longe de supor que, dez anos mais tarde, iria conhecer em terra de balantas, fulas e mandingas, as profundas contradições e mentiras de um regime, isolado do mundo e da realidade.
A 4 de Fevereiro de 1961 guerrilheiros do MPLA tomam de assalto a prisão e a emissora de Luanda, no mesmo dia em que termina a aventura de Henrique Galvão e seus companheiros com a entrega do “Santa Maria” às autoridades brasileiras e recebendo asilo político.
Estalara a guerra colonial e os massacres de colonos angolanos enchem de horror e de revolta, os écrans a preto e branco do único canal televisivo. Uma guerra que se haveria de se estender a Guiné e Moçambique, perante a recusa de Salazar em aceitar uma solução negociada, pacífica, para a autodeterminação dos territórios ultramarinos.
Botelho Moniz tenta ainda, num golpe de Estado, apear Salazar do poder, mas a intentona é sufocada e a resposta do homem de Santa Comba Dão fica expressa na célebre frase: “Para Angola, rapidamente e em força”. Logo a seguir viria o “Angola é nossa!”.
Catorze anos de guerra, de devastação, de milhares de mortos e feridos, de fome e miséria, que deixaram um território rico em recursos naturais, dividido e arrasado, mostraram que Angola não era nossa, nem será, tão pouco, dos angolanos... Mas esta é outra história a ser escrita no tempo próprio.
A 18 de Dezembro de 1961 novo golpe nas aspirações imperiais do ditador de Santa Comba: a União Indiana invade e anexa quase sem resistência, os territórios de Goa, Damão e Diu.
Começa a derrocada do Império Colonial Português, um “império” que, perante os ventos de mudança que assolaram o mundo após a 2ª Guerra Mundial, e os exemplos de outras ex-potências coloniais, estava condenado a seguir os mesmos caminhos da autodeterminação e da independência. Salazar, orgulhosamente só, criticado pela comunidade internacional e pela própria igreja católica não cedeu. Arrastou, na sua cegueira, o país para uma longa guerra injusta, onde as palavras “derrota” e “rendição” eram proibidas. “Apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”, disse, um dia, num discurso inflamado. Vassalo e Silva não lhe fez a vontade, quis viver e salvar os seus homens de uma morte certa e inglória, como, anos mais tarde, em 1973, em Guileje, na Guiné, o major Coutinho Lima tomou a mesma atitude, num aquartelamento flagelado durante cinco dias e despojado de tudo, até de armas e munições.
Conheci-o, pessoalmente, no Depósito dos Adidos, como um soldado raso, sem galões, triste e amargurado, mas orgulhoso da atitude tomada. Nesse ano (1973) a PIDE assassinara Amílcar Cabral, a guerra tomara proporções que o exército português nem sonhara. O PAIGC dispunha, agora, de supremacia em termos de armamento. Avião ou avioneta que descolasse era aeronave abatida. Os mísseis terra-ar faziam estragos incalculáveis, a mobilidade da guerrilha com uma nova estratégia deixava os comandos militares sem saber o que fazer.
Temia-se o pior. A ilha de Bissau começa a ser cercada com arame farpado. A cidade transformara-se numa nova Saigão e o que acontecesse teria de ser decisivo. Foi. O “Movimento dos Capitães” desencadeou o 25 de Abril e o término da guerra.
A solução política, tantas vezes proposta pelos líderes africanos (Neto, Mondlane, Cabral) a Salazar acabara por silenciar e resolver o que as armas não conseguiram.
História de uma mãe e de um caixão de pinho
O concelho de Nisa também sentiu na dor e no luto, na partida e na ausência, o drama da guerra colonial. Algumas famílias não mais voltaram a ver os seus filhos e entes queridos, que neste texto homenageamos.
Particularmente atingida pelo infortúnio e pelas vítimas da guerra foi a povoação de Tolosa.
O que talvez muitos não saibam é que foi a partir de uma carta pungente e comovedora, de uma mãe desta localidade, Maria Florinda da Luz, dirigida ao Ministro da Defesa que se começou a fazer justiça aos militares mortos na defesa dos territórios ultramarinos.
O Estado mandava os soldados para a guerra, mas só pagava a ida e o regresso dos militares vivos: não se responsabilizava pela trasladação dos mortos.
Se tivessem dinheiro, as famílias teriam que pagar se quisessem os seus mortos de volta: pagavam o caixão de chumbo, a embalagem da urna, a certidão do registo de óbito, o transporte de Lisboa para o cemitério de destino.
As famílias eram informadas da morte através de telegrama que geralmente acabava assim: “Informo Estado custeia remoção de ossadas passados cinco anos /Trasladação possível agora deseje despesa sua custa /Necessário depositar dez mil escudos Depósito Geral adidos Lisboa ou outra unidade/ caso assim não proceda trasladação impossível”.
Os portugueses eram “carne para canhão”, combatiam numa guerra de que não conheciam os contornos e por fim, quem os envolvia em tamanha aventura bélica nem sequer se preocupava em garantir que os entes queridos pudessem, em caso de morte, fazer-lhes as derradeiras homenagens de despedida. Levavam-lhes os filhos, os maridos, os noivos; roubavam-lhes anos de vida da sua juventude e, se a morte viesse, o direito ao luto, à dignidade de uma homenagem fúnebre teria de ser “cobrada” com dez contos.
Nos anos 60, dez contos eram uma fortuna. Vivia-se de magros salários, a população rural e não rural não dispunha de tal quantia. Maria Florinda da Luz, mãe do soldado Francisco da Luz Carloto, morto em combate no Norte de Moçambique, em 19 de Janeiro de 1967 não se conformou com a resposta. Escreveu ao Ministro da Defesa uma carta pungente:
“Venho com esta minha triste carta pedir a Vª Exª, Senhor Ministro da Defesa, que me explique duas palavras do meu querido filho, que a dor é tão grande que não sei aonde hei-de perguntar informações do meu queridinho filho? Lembrei-me de Vª Exª de me poder dizer alguma coisa. Um filho tão bom que alegrava o meu lar tão triste, e alegrava o meu coração. E agora grito à procura do meu triste filho sem saber aonde está e como foi a morte dele.
“Pedia a Vª Exª pela sua saúde, já que não tive a sorte de trazerem o meu filho vivo, peço-lhe que mo mandem mesmo morto. Para eu o adorar e rezar ao pé daquele bom querido filho.
Peço imensa desculpa a Vª Exª destas minhas tristes palavras, mas a dor é tão grande que não sei aonde hei-de respirar. O nome do filho é Francisco da Luz Carloto”.
A carta de Maria Florinda da Luz chegou ao secretário de Estado da Defesa, general Venâncio Deslandes que por sua vez enviou um ofício ao Estado-Maior do Exército sobre este grave problema. A partir de 2 de Março de 1967 com a publicação do Regulamento de Trasladações, o Estado passou a assegurar o regresso dos militares mortos na Guerra Colonial. (2)
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
está mesmo quase a chegar

Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar (1)
NOTAS
1 Menina dos olhos tristes – letra de Reinaldo Ferreira; Música de Zeca Afonso
2As grandes operações da Guerra Colonial 1961-1974 – Presselivre, Imprensa Livre SA
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 28/12/2011