21.4.24

OPINIÃO: Não há futuro para a liberdade sem a memória da falta dela

A liberdade, uma conquista de Abril para o nosso país é um valor perene nas sociedades modernas e nas democracias liberais como a nossa? Talvez seja, mas a liberdade não é um direito adquirido. É mais do que um valor absoluto. É um conflito permanente. A maior parte de nós portugueses mal éramos nascidos no dia 25 de Abril de 1974, somos filhos e netos de Abril e nunca respiramos o ar pesado e funesto de um país sem liberdade. 
A memória de um regime de mordaça e violência é algo que parece tão longe que não conseguimos sequer imaginar como seria a vida sem ela – a liberdade. 
A liberdade vive sob permanente ameaça e são as ameaças ao futuro da liberdade que nos devem preocupar e ocupar a todos. 
A memória de um país fechado na gaiola deve ser preservada e contada, não só nas palavras de ordem e nos programas oficiais das comemorações, mas sobretudo nas coisas práticas que um regime sem liberdades fundamentais implicava. Saber  por exemplo que as mulheres não podiam trabalhar sem autorização dos maridos e que estes podiam assassiná-las com relativa impunidade em caso de adultério é um dado histórico e concreto que espelha bem o carácter daquele regime. A censura e a proibição de livros, de imprensa livre, de cultura e de arte são outros exemplos. As torturas aos presos políticos, o analfabetismo, a pobreza são dados concretos que importa contar e fixar na memória coletiva, muito para lá do tempo de vida de quem sofreu os tratos de polé do regime salazarista. Não há futuro para a liberdade sem a memória da falta dela. 
As ameaças presentes e futuras às liberdades precisam de ser combatidas com o conhecimento do “modus operandi” dos agressores e dos tiranos. As ameaças às liberdades não são apenas no domínio dos direitos cívicos e políticos. A emergência das forças populistas e de extrema-direita que beneficiam da proteção dos regimes democráticos para os corroer e corromper por dentro é um fenómeno complexo em que a falta de memória ou a memória distorcida pela mentira ocupam lugar importante.
A tecnologia e a imprevisível forma como vai evoluir nos próximos anos pode, como sempre, estar ao serviço do bem ou do mal. Sistemas de recolha de dados digitais ou videovigilância que limitam a privacidade, impondo uma tensão entre segurança nacional e liberdades civis. As tecnologias que propagam desinformação, formas de censura digital que limitam a liberdade de expressão são já fenómenos concretos em que a tecnologia é usada contra e não a favor da liberdade. No futuro, as implicações da Inteligência Artificial para a autonomia humana, a liberdade económica e no trabalho são imprevisíveis. Mesmo a liberdade sexual, a liberdade das minorias, a liberdade das mulheres não são progressos garantidos. 
Na história há trágicas regressões que se irão repetir, agora com armas mais poderosas para exercer o domínio de uns sobre outros. É sempre de poder e de domínio que se trata. É por isso que no futuro as grandes batalhas pela liberdade se travarão nos mais diversos campos: No acesso e domínio da tecnologia e ciência, no acesso aos recursos, na soberania energética, nas desigualdades sociais, no ensino e nas artes, na bioética e liberdades pessoais, nos desafios ambientais, nas migrações e na regulação da vida privada. 
Todas estas batalhas futuras pela liberdade dependem de democracias sólidas, representativas e inovadoras, capazes de usar o seu poder de regulação das liberdades em benefício de todos e não apenas de alguns, como tem acontecido ao longo da história. A cada um de nós cabe estar de sentinela e em vigilância para as lutas do futuro pela liberdade, lutas que começam hoje. 
É por isso que devemos ter em todos os momentos da vida pessoal e coletiva um pequeno instrumento chamado “libertómetro” que apita sempre que deteta uma ameaça à liberdade. Em todas as questões complexas com que nos deparamos na nossa vida e quando houver duas partes, ideias, políticas ou práticas em conflito o “libertómetro” ajuda-nos a pensar e a posicionarmo-nos, porque a liberdade costuma apenas estar apenas num dos lados. Lutar pela liberdade dos outros continua a ser a melhor forma de defender a nossa. A indiferença e a alienação são os melhores aliadas das tiranias, as do passado e as do futuro.
* Rui Pelejão in Jornal do Fundão
** Cartoon de Vasco Gargalo