A direita gosta muito de se insurgir contra os alegados “donos” do 25 de Abril. O problema – e agora veio ao de cima mais uma vez na morte de Otelo Saraiva de Carvalho – é que demasiadas pessoas de direita nunca se sentiram à vontade com o 25 de Abril (e passaram o sentimento aos filhos).
Já que o nosso Presidente da República em funções se sente mais à vontade a elogiar Marcelino da Mata do que a prestar homenagem a Otelo Saraiva de Carvalho, é fundamental agradecer ao antigo Presidente Ramalho Eanes ter vindo lembrar duas coisas básicas: “A ele [Otelo] a pátria deve a liberdade e a democracia. E esta é dívida que nada, nem ninguém, tem o direito de recusar.” Depois do texto confuso com que Marcelo decidiu “evocar” Otelo Saraiva de Carvalho no dia da sua morte, é um bálsamo saber que há um ex-Presidente da República, que abandonou as funções em 1986, capaz de sentido de Estado no momento da morte de um homem decisivo para a nossa liberdade. É evidente que Ramalho Eanes é um homem do 25 de Abril e Marcelo Rebelo de Sousa não é – talvez isto também ajude a explicar que o “filho do governador colonial” esteja mais à vontade para fazer a homenagem a Marcelino de Mata do que para “evocar” Otelo.
Ramalho Eanes não silencia o papel de Otelo nas FP-25 e é claro a condenar os “desvios políticos perversos, de nefastas consequências”. Por esses “desvios políticos perversos”, Otelo passou cinco anos em prisão preventiva. Sim, Mário Soares pressionou PS e PSD a aprovarem a amnistia – mas também tinha sido Mário Soares a pressionar para o regresso de António Spínola a Portugal (esteve exilado no Brasil e em Madrid), outro cabecilha de uma organização terrorista, o MDLP, só que neste caso era terrorismo de extrema-direita. Quando morreu, em 1996, o homem do MDLP teve direito a luto nacional. Otelo, parece que por vontade expressa do primeiro-ministro imediatamente aceite pelo Presidente da República, segundo diz o Expresso, não terá.
A direita gosta muito de se insurgir contra os alegados “donos” do 25 de Abril. O problema – e agora veio ao de cima mais uma vez na morte de Otelo Saraiva de Carvalho – é que demasiadas pessoas de direita nunca se sentiram à-vontade com o 25 de Abril (e passaram o sentimento aos filhos). O facto de muitos dirigentes políticos de direita, incluindo Cavaco Silva, se recusarem a utilizar o cravo na lapela – o símbolo popular do 25 de Abril – é todo um tratado de semiótica.
Quem se espanta com a violência verbal que anda no Twitter devia conhecer o meu “liceu” nos anos 80: a fractura dos defensores do 25 de Abril contra aqueles que apenas aprenderam a “viver habitualmente” com o 25 de Abril estava tão exposta naquela época como hoje. Na verdade, a única novidade é a existência de redes sociais.
Devemos agradecer profundamente a Otelo o 25 de Abril. Mas também devemos estar gratos às várias lideranças dos partidos de direita pelo facto de terem conseguido “integrar” muitos dos desolados do 25 de Abril na democracia. São dívidas históricas.
Ana Sá Lopes - Público - 26/7/2021