1. Só não vê quem não quer ver: há uma ofensiva da direita radical no espaço público, que associa os temas “lubrificantes” da vitimização, da pseudociência académica para efeitos de autoridade, do sectarismo político, a uma enorme agressividade verbal e ataques pessoais. A utilização extensiva de fake news faz parte do padrão dos ataques ad hominem. O objectivo é criar uma ecologia favorável ao que chamam “resistência ao socialismo” — porque para eles é tudo “socialismo” — para varrer o centro político e a moderação, e instituir uma arregimentação tribal, ajudando a corroer a democracia parlamentar. Quem se preocupa com a democracia passou agora à categoria de “situacionista”, e eu preocupo-me porque sei de onde isto vem e aonde isto vai dar.
2. Como lhes correu mal a tentativa de reabilitar a ditadura através de uma “neutra” manipulação “académica”, e como a sensação evidente de perda lhes é insuportável, voltam-se para outros lados, mas com o mesmo objectivo. A natureza de uma ofensiva é sempre empurrar para a frente.
3. Esta ofensiva é conduzida em todos os azimutes, do populismo da rua à ultradireita académica, nas redes sociais e em artigos de opinião, e, embora nos distraíamos com o Chega, vai muito mais longe do que o partido de Ventura. Os seus efeitos perigosos começam a verificar-se quando aparecem apelos ao saneamento dos professores “esquerdistas” e à limpeza ideológica dos órgãos de comunicação.
4. O seu objectivo estratégico a curto prazo é capturar o PSD, e não é líquido que não o consigam. O Chega serve para umas coisas, mas não chega para ganhar eleições nem para estar na base de uma frente de direita que possa ter sucesso eleitoral e formar governo. Sem o PSD não saem das franjas, com o PSD têm uma chance de impor o seu programa. O PS ajuda. Sempre que o PS abandona o terreno do centro-esquerda, está a dar força a esta tribalização, a ajudar à crise do centro e a preparar o terreno para o outro objectivo estratégico desta direita radical que é a constituição de uma frente de direita, na base das suas posições, liderada pelo PSD.
5. O que é que estes homens defendem? O Argumentum ad Hitlerum não é nem rigoroso nem eficaz, porque oculta os aspectos novos da actual direita radical, embora haja fenómenos e processos idênticos, principalmente na erosão da democracia. Mas esta nova direita radical ganha mais em ser comparada com a actual alt-right e o “trumpismo”.
6. Os seus temas são os de Trump e do Partido Republicano americano, a que se acrescenta a tradição da direita radical europeia e portuguesa. Esses temas são a “cancel culture”, o ataque ao Estado social, a limitação drástica da acção do Estado na economia em nome da “liberdade económica”, uma cultura hostil aos direitos laborais e sociais, a limitação da liberdade sindical, a contestação à igualdade e aos direitos das mulheres, a revisão da história colonial e da ditadura, o ataque à Constituição, ao 25 de Abril, assente na defesa de um regime autoritário e oligárquico. Na Europa, é para a Hungria e a Polónia que devemos olhar. Segundo esta direita radical, vivemos hoje, em Portugal, com o governo socialista de António Costa, numa “ditadura”, que “abafa” as liberdades e usa o Estado para dominar tudo. Ainda falta a acusação da pedofilia, que já foi tentada antes, e voltará a ser tentada.
7. Um dos problemas em defrontar esta ofensiva vem de que a sua crítica mais eficaz não parte das ideias “fracturantes” dos últimos anos, nem da política identitária centrada no abandono das questões sociais a favor de lutas de género, de raça, de orientação sexual, que, pelos seus exageros, tem sido um maná para esta direita radical. Há hoje mais mobilização para uma Marcha LGBT do que para uma manifestação contra os despedimentos. Este abandono das questões sociais, da preocupação com a pobreza e a desigualdade, com o mundo do trabalho, fragilizou todo o centro e a esquerda.
8. Segundo esta direita radical, vivemos hoje, em Portugal, com o Governo socialista de António Costa, numa “ditadura”, que “abafa” as liberdades, usa o Estado para dominar tudo, em particular o aparelho judicial, persegue os seus adversários e é corrupto até à medula. Ainda falta a acusação da pedofilia, que já foi tentada antes, e voltará a ser tentada. Esta análise do país pareceria absurda pelo seu exagero se as pessoas parassem para pensar para além do ruído tribal.
9. É certo que muitas perversões existem na situação actual e o clientelismo socialista e a corrupção são pechas de hoje, como no passado foram de outros governos. É igualmente verdade que a natureza das clientelas dos grandes partidos gera fenómenos idênticos, agravados no PS pelo seu jacobinismo. Mas o exagero muda o carácter destas acusações e torna-as uma coisa diferente, torna-as um ataque contra a democracia. Não há ditadura nenhuma hoje em Portugal, há abusos do poder, e dar este salto torna ineficaz o combate político ao PS, e essa ineficácia torna-se uma impotência que tende a justificar-se como resultado de uma perseguição e da falta de liberdade. É um círculo vicioso.
10. Estas notas vão continuar para a semana com a análise de intervenções recentes de dois dos mentores desta nova direita radical, Diogo Pacheco de Amorim na chamada “Academia Política do Chega”, e Carlos Blanco de Morais no PÚBLICO. Vejo com uma certa ironia a interpretação psicanalítica contra mim de que uma vez maoista sempre maoista, coisa, aliás, que nunca escondi, como muitos fazem. O mesmo, aliás, nunca se aplica aos “fascistas”, lembrando que os antepassados desta direita não são os reformistas do tempo de Marcelo Caetano, da SEDES, da Ala Liberal. São os sectores “ultras” contra Marcello Caetano, para quem este era demasiado mole face à oposição, e eles seriam duros, o que, como o instrumento da dureza era a PIDE, sabemos muito bem o que significava. Aliás, exigiram na Assembleia Nacional a pena de morte contra os “terroristas” internos e seus “cúmplices”, e consideravam “traidores” Sá Carneiro, Balsemão, Miller Guerra, Magalhães Mota, etc.
11. Esta ala mais à direita não se limitava a publicar uns panfletos, ou a fazer umas provocações quando estavam em grupo e com protecção policial, treinavam com a Legião Portuguesa, por exemplo em Coimbra. E, nos círculos do Futuro Presente, mesmo depois do 25 de Abril, não escondiam a sua admiração por Pinochet, e andavam a fazer caminhadas pela serra da Estrela para endurecer o corpo “vanguardista”, e alguns dos seus próceres aparecem em fotografias de braço ao alto. Só há uma coisa em que eles não têm biografia, é na defesa da democracia.
12. Pronto. Agora podem começar a insultar. (Continua)José Pacheco Pereira, in Público, 03/07/2021