Portugal vive em estranha contradição: ninguém defende a
precariedade, pelo contrário, todos dizem querer combatê-la. E é precisamente
pelas boas intenções que se ficam os falsos consensos. Da liberalização da lei
laboral aos falsos estágios, as mudanças nesta área têm sido arrancadas a
ferros.
Apesar das promessas eleitorais do PS, pouco se avançou
no combate à precariedade no setor privado. Houve alguma recuperação do número
de trabalhadores abrangidos pela contratação coletiva mas, no essencial, o
código laboral é o mesmo que sustentava a política dos baixos salários
promovida pela Direita, que o PS tanto critica. As medidas de penalização do
uso excessivo de contratos a prazo, várias vezes anunciadas, ainda não viram a
luz do dia. As empresas de trabalho temporário - modernas traficantes de mão de
obra - continuam a lucrar com a precarização absoluta.
No setor público, no entanto, foi possível dar passos
concretos em nome da decência. Depois de anos em que Mota Soares ,
ex-ministro do CDS, se negou a divulgar o número de precários no Estado, foi
possível fazer esse levantamento e chegar a um acordo para o Programa de
Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública
(PREVPAP) - mesmo com o voto contra do PSD e CDS.
Chegaram então os números da triste realidade de um Estado
que, para suprir funções permanentes, há anos que usa e abusa de dezenas de
milhares de precários: contratos a prazo e recibos verdes, trabalho gratuito de
desempregados em programas ocupacionais, recurso a empresas de outsourcing. Só
nas autarquias, um em cada sete trabalhadores é precário, sempre a assegurar
funções permanentes. Dessas 15 758 pessoas, metade são desempregados com
contratos ocupacionais.
No combate à precariedade não há lutas mais importantes
que outras. O Estado deve empenhar--se tanto em proteger os direitos laborais
no privado como em ser um exemplo de boas práticas e não um manual de
selvajaria laboral.
O PREVPAP abriu a possibilidade de dar um contrato com
direitos a milhares de trabalhadores que há anos sustentam os serviços públicos.
A expectativa que criou foi imensa e não pode ser defraudada.
Além dos atrasos, começam a surgir queixas de bloqueios
ao processo a partir das autarquias (as poucas que aderiram, ainda) e
organismos públicos. Por exemplo, a Universidade de Aveiro recusa-se a integrar
300 pessoas; a freguesia da Penha de França, em Lisboa, despediu mais de 20
trabalhadores com dez anos de casa; na Águas de Portugal, os trabalhadores
contratados há anos através de empresas de prestação de serviços não estão a
ser reconhecidos, em contradição com a lei.
O Governo tem de se comprometer com o sucesso do PREVPAP.
Há milhares de pessoas à espera, este não é tempo para recuos e muito menos
para deitar tudo a perder.
Mariana Mortágua in "Jornal de Notícias" - 27/2/2018