6.2.18

OPINIÃO: A derradeira liberdade

Pensar a morte implica conceber deixar de existir. É difícil, não temos ideia do que significa inexistir e o vazio é sempre assustador. Mas boa parte do que torna a ideia da nossa própria morte tão angustiante não é a abstração do nada. É a antecipação do momento, em vida, em que tomaremos consciência de que a morte é certa. E o medo maior é que esse momento seja longo, doloroso ou degradante. Que o nada chegue antes de nos irmos, que o corpo nos sobreviva, muito para além da vontade e, portanto, da dignidade.
É fundamentalmente por isto que a eutanásia não é uma escolha sobre a morte. É sobre a liberdade de decidir como queremos viver uma morte quando esta se afigura insuportavelmente inevitável.
Não deixa de ser estranho que um assunto assim complexo redunde num princípio tão elementar. Há dias pude ouvir Alexandre Quintanilha a colocar a questão de uma forma reveladora. Dizia ele que a história está repleta de gente para quem a forma de morrer fez parte de uma escolha de vida. Por isso morreram pela honra, pela dignidade, por uma verdade ou por uma ideia. Se isto é tão naturalmente aceite, o que pode haver de estranho em, perante a morte e o sofrimento, querermos para nós um fim de vida com a dignidade que imaginámos e desejámos?
É só quando se confunde o debate que ele, de facto, se torna confuso. A morte assistida não é uma alternativa aos cuidados paliativos, nem pode ser vista como tal. Portugal precisa urgentemente de desenvolver a sua rede de cuidados paliativos, mas o acesso aos melhores serviços não erradicará a questão de fundo: perante o sofrimento, mesmo que a dor física esteja sob controlo, temos ou não o direito a escolher como queremos morrer? É enorme a violência de quem acha que o humanismo está em forçar-nos ao sofrimento.
Evitemos também os fantasmas que se acenam apenas para criar o susto. A eugenia, a eutanásia forçada, as decisões impostas. Todas essas práticas continuarão a ser crimes tão graves e condenáveis como hoje. Do que se fala é da despenalização da morte assistida, em casos de doença incurável e fatal ou lesão definitiva, de doentes em situação de sofrimento duradouro e insuportável, maiores de idade e absolutamente capazes de tomar uma decisão em consciência.
Não pretendo ocultar a complexidade do tema e muito menos a responsabilidade que significa legislar sobre ele. O debate tem vindo a acontecer na sociedade portuguesa e, para além da seriedade que se exige, também é preciso que não se debata para debater mas para decidir. O projeto de lei que o Bloco agora apresenta respeitou esse debate, amadureceu e aprendeu com ele. Tem a força de uma reflexão longa mas necessária, que agora se quer transformar em mudança.
Poder decidir morrer com a dignidade com que escolhemos viver, a derradeira liberdade que uma sociedade tolerante deve garantir.
Mariana Mortágua in “Jornal de Notícias” – 6/2/2018