Pedaços de vida que por cá levamos
Alentejo… Esta terra que me viu nascer, crescer, partir e
à qual um dia quero e hei-de voltar.
O dia até tinha corrido bem, foi aí por alturas do
Entrudo, três ou quatro dias antes; andávamos a remodelar uma loja ali para os
lados do Saldanha/Campo Pequeno, no coração de Lisboa, eram mais ou menos
quatro da tarde, o trabalho estava a correr lindamente, estávamos todos satisfeitos,
o dia estava bonito, o sol brilhava, só eu não estava nos meus dias e o mais
engraçado era que não sabia o porquê do meu mal estar. Nisto, digo para o
pessoal:
- Vou-me embora!
- Já? Responderam eles quase em coro, ao mesmo tempo que
sorriam; já tinham notado que eu não estava no meu melhor. Se bem pensei,
melhor o fiz; arrumei as minhas coisas, despedi-me e… ala que se faz tarde!
Desci a Fontes Pereira de Melo, subi o famoso Túnel do
Marquês, passei as Amoreiras, atravessei o Viaduto Duarte Pacheco e comecei a
subir para o Parque de Monsanto. Ao chegar ao alto onde se começa a descer e se
avista Miraflores, o que vejo eu? O trânsito parado, filas até mais não, até
perder de vista… Já estou tramado – penso cá para comigo – Só me faltava esta javardice.
Quinze minutos, meia hora, eu ali parado, e estas filas
que não andam nem desandam… Nisto, olho para a minha direita, ali a seis metros
estava uma amendoeira em plena flor, era o renascer da vida, era a Primavera
que se anunciava, era o equinócio que vinha a caminho. Nela saltitava um casal
de chapins azuis, e eu ali parado a apreciar a cena, ouço apitar e olho para o
lado.
- Estás a olhar para onde, que não andas, estás na lua ou
quê?
A fila tinha começado a andar sem eu me ter apercebido e
eu acenei de cá a pedir desculpas. Olhou para mim, sorriu, acenou de lá como
quem diz “estás desculpado”… Tinha-me estado a observar e compreendeu que eu
embora estivesse ali fisicamente, a mente estava noutro lugar.
Nessa tarde, nesse dia, enquanto o trânsito recomeçava
lentamente a andar, o sol ao longe punha-se no horizonte. A emoção tomou conta
de mim. Senti e tive mais saudades que nunca do Alentejo, da notável vila de
Nisa, da aldeia que me viu nascer, dos lugares que me são queridos, do sabor da
água fresca das nascentes, do aroma dos poejos, do cheiro do alecrim e do
rosmaninho nas barreiras do Sever, da carqueja na charneca, da giesta branca e
amarela em flor, do odor das xaras, do piar do mocho galego ao escurecer, do
bramir dos gados ao entardecer pelas azinhagas em redor da aldeia em direcção
aos palheiros e currais para passar a noite, da brama dos veados nas noites
cálidas de Setembro, do bater do sino na Igreja Matriz, enfim… de mil e uma
coisas que fazem com que me sinta bem quando aí vou.
Escusado será dizer que cheguei a casa já noite escura,
de nada me valeu ter saído mais cedo. Minha mãe, ao entrar, olha-me e diz-me:
- Vens triste. O trabalho está a correr mal?
Nessa altura já eu sabia o que tinha.
- Vou ali ao café da Isabel e venho já, digo-lhe.
A noite ainda me reservava muitas surpresas.
- Olha que ricas prendas aqui estão e não me diziam nada
- digo eu para eles ao entrar.
Eram o João do Cabeção, o Leandro da Póvoa e Meadas e o
Rafael de Idanha-a-Nova.
- Aníbal! Estás bom? Ao tempo que a gente não se via… Que
cara é essa? Estás doente? – diz-me o João.
Nem lhe respondi, ao mesmo tempo que os cumprimentava e
me ia a sentar olhei para a mesa onde estava um prato com batatas fritas e umas
cervejas e digo-lhes:
- Esperem aí um bocadinho que eu vou ali a casa buscar um
queijo de Nisa.
Ora, era isso que eles queriam ouvir, ficaram logo em pulgas. A noite
prometia…
- Eu também vou lá a casa buscar um painho da Beira Baixa
que trouxe lá da Idanha, diz o Rafael. A noite estava-se a compor.
Estavam as coisas arranjadas; sentámo-nos, comemos e
bebemos com apetite. A certa altura, já com os estômagos aconchegados digo para
eles:
- Então? Vamos ao Alentejo aos tortulhos?
- Olha do que tu te foste lembrar… Digam lá a um cego se
quer ver…
- Vamos! O que é que levemos para a merenda? Sim, que
isto de ir aos cogumelos e não levar uma boa pinga do nosso Alentejo e um bom
petisco no farnel não tem graça nenhuma.
A mesa já estava vazia, a Isabel que sabe que se não
trata a gente bem batemos as asas e mudamos de poiso, vendo isto diz lá do
balcão:
- Vocês querem dobrada?
- Venha ela!! – diz logo o Leandro.
- Já cá está ou vem a caminho? – diz o João.
Falámos das “nossas” terras, das gentes que lá deixámos,
dos costumes e tradições, dos comeres. Rimos, bebemos, comemos, brindámos. O
tempo passou, quando demos por ela já era meia-noite. Fizemos mais um brinde,
despedimo-nos e cada um foi para casa, mais alegre e satisfeito. A noite foi
completa, amanhã era dia de trabalho.
Cheguei a casa, pus as coisas no sítio do costume e
deitei-me.
Estava quase a adormecer, ouço o cão lá fora no quintal a
ladrar e pensei: Anda ali alguém…
Era o meu vizinho do lado a tocar à campainha.
- Aníbal, tens as luzes da camioneta acesas.
- Ora bolas para isto, que mais me irá acontecer hoje?
Lá tive de me levantar. Finalmente deitei-me. Enquanto
não adormecia, pensei cá para mim: Isto hoje foi um dia e peras… poças, foi de
mais.
Adormeci a pensar que dias melhores e piores virão; temos
de ser realistas, acima de tudo há que ter esperança.
Nessa noite sonhei que estava no Alentejo, acordei mais
bem disposto pela manhã, pronto mais uma vez para o que der e vier.
Haja saúde, amigos, um dia destes vou aí às origens, às
raízes amolecer estas saudades e carregar as baterias que andam a ficar
fracalhotas.
Até qualquer dia.
* História baseada em factos passados na vida real,
personagens, locais e nomes verdadeiros.
Aníbal Castelo Augusto in "Jornal de Nisa" -
nº 253