21.3.13

OPINIÃO - Francisco Bergoglio: Ver para crer

1. A eleição do cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, para bispo de Roma, tratamento por ele preferido em vez de papa da igreja católica apostólica romana, gerou uma onda de simpatia e expetativa no pontificado agora iniciado, tanto para fiéis como para muitos não crentes.
  Um acontecimento desta natureza tem, naturalmente, repercussões no futuro da humanidade. Além do poder religioso, o papa tem o estatuto de chefe de estado, o Vaticano, indiscutivelmente, na conjugação de múltiplos aspetos, um dos mais poderosos do mundo. Em poucos casos de tomadas de posse de chefes políticos estão 132 delegações ao mais alto nível. Desta vez, com o acréscimo (muito positivo) da presença de quase todas as correntes do cristianismo e outras religiões. Ortodoxos, hebraicos, islamitas, etc,etc., a antever salutar aprofundamento do diálogo ecuménico.
2. Conhecida a escolha do colégio cardinalíssimo, saído o fumo branco da pequena chaminé,impressionou o ar simples como o novo papa se dirigiu aos milhares presentes na praça de São Pedro. A origem latino-americana, a ascendência familiar humilde, o gesto (pouco usual) de utilizar transportes públicos e o hábito de confecionar as suas refeições, entre outros atributos empáticos, criaram, de imediato, enorme  onda de simpatia, levada ao «rubro» quando proclamou que quer «uma igreja pobre, para os pobres».
3. Sem perda de tempo,as correntes mais «duras» da esquerda latino-americana lançaram a acusação da conivência de  D. Jorge com crimes da ditadura argentina, nomeadamente na perseguição a padres mais progressistas. Em simultâneo, critica-se-lhe a posição conservadora a propósito da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que terá levado a fortes tensões com a presidente do país. Pelos documentos disponíveis, são acusações verdadeiras, sendo irrazoável a tentativa do porta-voz do Vaticano em desmenti-las, atacando logo correntes de opinião e jornais «esquerdistas».
4. Estes aspetos do passado, que não podem, naturalmente, ser escondidos, não devem, contudo, ser sobrelevados. Primeiro, porque uma das principais vítimas já veio dar o assunto por «encerrado». Depois, porque, na lógica religiosa do perdão há que saber ser tolerante, mesmo por parte daqueles que não seguem a doutrina. Mal comparado (pelo alto cargo que está em causa) conhecemos regedores do antigamente que, «regenerados» pela democracia, realizaram notável trabalho como presidentes de junta da sua freguesia ou jovens que serviram (de forma autêntica, sem oportunismo) o regime democrático decorrente da revolução de abril e tinham «pertencido» à «mocidade portuguesa » salazarenta. Há que saber atender à reconversão quando ela é genuína.
5. Não se pode  pretender que o novo papa (ou qualquer outro) venha defender a «liberalização» do aborto como livre opção da mulher ou a adoção de crianças por dois homens. Não queiramos o impossível. Era negar os próprios princípios da igreja. O que há que reclamar de um papa, isso sim, se quer ser levado a sério quando diz «ser sensível ao sofrimento dos mais fracos» é ser tolerante e aceitar a interrupção da gravidez em situações como, por exemplo, a brutalidade da violação da mulher. Um papa carinhosamente «amigo das pessoas», a quem quer «assegurar a beleza da criação», não pode mais considerar a homosexualidade com doença, levantar objeções morais ao uso do preservativo como forma de planeamento familiar e prevenção de doenças, enfim, conflituar com progressos civilizacionais elementares. Tem que lutar corajosamente (não apenas em discursos de circunstância) por uma paz autêntica e duradoura, contra a selvajaria e desumanidade do capitalismo que escraviza tantos seres humanos, pelo desenvolvimento harmonioso, incluindo no plano ambiental, do planeta, em todos os seus lugares, insurgindo-se contra o individualismo sem valores e o «salve-se quem puder».
6. Nos atos que se esperam, para dar coerência às palavras do arranque do pontificado, as mudanças no seio da igreja serão a pedra toque determinante. O anacronismo do celibato dos sacerdotes, muito na origem das perversões sexuais que têm constituído escândalo, a ordenação das mulheres, que são largamente maioritárias no envolvimento religioso e o envolvimento alargado dos fiéis leigos numa nova estrutura que se quer mais aberta, livre e democrática. Nesse sentido, é urgente retomar de forma corajosa as conclusões (muitas por impulsionar) do concílio  Vaticano II e avançar para a realização de um outro conclave com novo espírito e ligação efetiva à sociedade. Deseja-se que a próxima eleição de um papa não seja privilégio de 115 cardeais, mas participação eleitoral de todo o corpo de sacerdotes, incluindo os leigos. Importante que daí resulte um papa com idade muito inferior a Francisco. Sem ofensa ao caráter ativo que deve marcar um envelhecimento saudável, certas funções requerem o impulso de adultos seguramente, mas mais jovens. Não é razoável o bispo de uma diocese resignar obrigatoriamente ao completar 75 anos e o chefe máximo da igreja iniciar a missão já com essa idade ultrapassada. É uma contradição etária que também terá que ser resolvida no futuro.
José Manuel Basso