Um acontecimento desta natureza
tem, naturalmente, repercussões no futuro da humanidade. Além do poder religioso, o
papa tem o estatuto de chefe de estado, o Vaticano, indiscutivelmente, na
conjugação de múltiplos aspetos, um dos mais poderosos do mundo. Em poucos casos
de tomadas de posse de chefes políticos estão 132 delegações ao mais alto
nível. Desta vez, com o acréscimo (muito positivo) da presença de quase todas
as correntes do cristianismo e outras
religiões. Ortodoxos, hebraicos, islamitas, etc,etc., a antever salutar
aprofundamento do diálogo ecuménico.
2. Conhecida a escolha
do colégio cardinalíssimo, saído o fumo branco da pequena chaminé,impressionou o
ar simples como o novo papa se dirigiu aos milhares presentes na praça de São
Pedro. A origem latino-americana, a ascendência familiar humilde, o gesto (pouco
usual) de utilizar transportes públicos e o hábito de confecionar as suas
refeições, entre outros atributos empáticos, criaram, de imediato, enorme onda de simpatia, levada ao «rubro» quando
proclamou que quer «uma igreja pobre, para os pobres».
3. Sem perda de
tempo,as correntes mais «duras» da esquerda latino-americana lançaram a
acusação da conivência de D. Jorge com
crimes da ditadura argentina, nomeadamente na perseguição a padres mais
progressistas. Em simultâneo, critica-se-lhe a posição conservadora a propósito
da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que terá levado a
fortes tensões com a presidente do país. Pelos documentos disponíveis, são
acusações verdadeiras, sendo irrazoável a tentativa do porta-voz do Vaticano em
desmenti-las, atacando logo correntes de opinião e jornais «esquerdistas».
4. Estes aspetos do
passado, que não podem, naturalmente, ser escondidos, não devem, contudo, ser
sobrelevados. Primeiro, porque uma das principais vítimas já veio dar o assunto
por «encerrado». Depois, porque, na lógica religiosa do perdão há que saber ser
tolerante, mesmo por parte daqueles que não seguem a doutrina. Mal comparado (pelo alto cargo que está em causa) conhecemos regedores do antigamente
que, «regenerados» pela democracia, realizaram notável trabalho como presidentes
de junta da sua freguesia ou jovens que serviram (de forma autêntica, sem
oportunismo) o regime democrático decorrente da revolução de abril e tinham
«pertencido» à «mocidade portuguesa » salazarenta. Há que saber atender à
reconversão quando ela é genuína.
5. Não se pode pretender que o novo papa (ou qualquer
outro) venha defender a «liberalização» do aborto como livre opção da mulher ou
a adoção de crianças por dois homens. Não queiramos o impossível. Era negar os
próprios princípios da igreja. O que há que reclamar de um papa, isso sim, se
quer ser levado a sério quando diz «ser sensível ao sofrimento dos mais fracos»
é ser tolerante e aceitar a interrupção da gravidez em situações como, por
exemplo, a brutalidade da violação da mulher. Um papa carinhosamente «amigo das
pessoas», a quem quer «assegurar a beleza da criação», não pode mais
considerar a homosexualidade com doença, levantar objeções morais ao uso do
preservativo como forma de planeamento familiar e prevenção de doenças, enfim, conflituar com progressos civilizacionais elementares. Tem que lutar
corajosamente (não apenas em discursos de circunstância) por uma paz autêntica
e duradoura, contra a selvajaria e desumanidade do capitalismo que escraviza
tantos seres humanos, pelo desenvolvimento harmonioso, incluindo no plano
ambiental, do planeta, em todos os seus lugares, insurgindo-se contra o
individualismo sem valores e o «salve-se quem puder».
6. Nos atos que se
esperam, para dar coerência às palavras do arranque do pontificado, as mudanças no
seio da igreja serão a pedra toque determinante. O anacronismo do celibato dos
sacerdotes, muito na origem das perversões sexuais que têm constituído escândalo, a
ordenação das mulheres, que são largamente maioritárias no envolvimento
religioso e o envolvimento alargado dos fiéis leigos numa nova estrutura que se
quer mais aberta, livre e democrática. Nesse sentido, é urgente retomar de forma
corajosa as conclusões (muitas por impulsionar) do concílio Vaticano II e avançar para a realização de um outro conclave com novo espírito e
ligação efetiva à sociedade. Deseja-se que a próxima eleição de um papa não seja
privilégio de 115 cardeais, mas participação eleitoral de todo o corpo de
sacerdotes, incluindo os leigos. Importante que daí resulte um papa com idade
muito inferior a Francisco. Sem ofensa ao caráter ativo que deve marcar um
envelhecimento saudável, certas funções requerem o impulso de adultos
seguramente, mas mais jovens. Não é razoável o bispo de uma diocese resignar
obrigatoriamente ao completar 75 anos e o chefe máximo da igreja iniciar a
missão já com essa idade ultrapassada. É uma contradição etária que também terá
que ser resolvida no futuro.
José Manuel Basso