Os cânticos na noite da Encomendação das Almas
Mário Mendes
Em Arez, as noites de sextas-feiras da Quaresma ganharam,
desde há 11 anos, um outro encanto e mistério. Um grupo já identificado como o
dos “Encomendadores” percorre as principais ruas da antiga vila e em locais
estabelecidos, na encruzilhada de caminhos, dispõe-se em círculo e entoa os
cânticos da “Encomendação das Almas”.
É uma tradição muito antiga, que remonta à Idade Média e
praticada em Arez até início dos anos sessenta do século passado. Depois, por
falta de “encomendadores” ou de vontade, o ritual perdeu-se e foi sendo
esquecido na poeira do tempo. Até que...
“ Em Março de 2002, - relembra Rosa Metelo, professora e
presidente da associação ACESA – “no âmbito do projecto local “Seres e Saberes”
da antiga Escola Básica de Arez, a que pertencia como professora, os alunos
resolveram entrevistar e filmar o senhor José que, entre várias histórias e
costumes antigos, lembrou a tradição que era feita em Arez, nas sextas-feiras
pela Quaresma e que se chamava “Encomendar as Almas”. Professores, alunos e
senhoras de várias idades ensaiaram, então, a letra e os cânticos. Às 11 horas
da noite saímos da escola e em silêncio caminhamos até às encruzilhadas onde
antigamente se encomendavam as almas. Terminámos o percurso à meia-noite,
depois de termos cantado a “Encomendação” em sete locais da aldeia. A tradição
era reposta e assim tem sido desde essa altura”.
Na noite da passada sexta-feira, estivemos na sede da ACESA –
Associação da Cultura e Saberes de Arez – e ficámos a conhecer o grupo de
“Encomendadores”: Idalina Vaz, 72 anos; João Lourenço, 68 anos e a esposa Maria
de Fátima Lourenço, de 66; Rosa Metelo, 57 anos, a mentora do projecto e o
filho Ricardo Metelo, 18 anos.
O grupo chegou a ter, no início, 20 elementos, constituído
na sua maioria por mulheres. Hoje, devido a doença, não pode contar com Antónia
Vaz, 74 anos, e uma das vozes mais sonantes. Não se trata de um grupo completo,
fechado. O apelo da ACESA dirigido aos habitantes de Arez é que mais homens e
mulheres, idosos ou jovens, participem, mantendo e divulgando esta tradição.
Saímos para a rua. A aragem da noite é fria, mas parece ter
passado a ameaça de chuva. A primeira paragem é junto à Igreja Matriz.
Dispostos em círculo, os encomendadores puxam das vozes e, em sintonia, lançam
em cântico, os apelos à quietude das almas.
São sons pungentes, um cantochão vibrante que quebra o
silêncio quase sepulcral da aldeia. Não se vê vivalma. Pressente-se, porém,
através da luz vinda de algumas frestas de portas e janelas que os cânticos não
passam indiferentes. Diz a tradição e, talvez, a superstição das gentes, que
“enquanto as almas são encomendadas não se deve abrir portas ou janelas, para
impedir a entrada de alguma alma desencaminhada”.
Eu vos peço aos meus irmãos
Que rezeis um padre-nosso
Àquelas benditas almas
Que andam sobre as águas do mar
Que Deus chegue a ponto d`as salvar
Seja pelo amor de Deus
Pelo amor de Deus seja
O cântico é repetido mais duas vezes, com ligeira alteração
no começo do primeiro verso “Mais vos peço...” e na intenção “Que rezeis uma
Ave-Maria” e “Que rezeis uma Salve-Rainha”. O ritual termina, em cada paragem,
com os elementos do grupo a benzerem-se, fazendo o sinal da cruz.
Chegámos ao alto do Rossio, junto ao cruzeiro. O grupo
procura o melhor sítio para difundir a mensagem, mas o frio e o vento são
cortantes, gélidos. Agasalham-se como podem, tentando proteger as vozes e as
gargantas. Não é um exercício fácil, esta prática que vem desde a longínqua
noite dos tempos e que em algumas aldeias do norte é, de quando em vez,
“condimentada” com um copinho para retemperar as forças. Aqui, domina a
vontade, a religiosidade, inquebrantável destes homens e mulheres.
Entoam, a uma só voz, os apelos em forma de música, para
serenarem as almas.
Repetem, ao longo da noite, fria e silenciosa, em mais cinco
locais da aldeia, as mesmas palavras e preces, irmanados num desejo comum que
junta a fé, a cultura e a tradição.
Na próxima sexta-feira, e até à sexta-feira santa, sairão,
novamente, para a rua e irão “Recomendar as Almas”, porque “há almas que
precisam de luz” e o objectivo da associação é manter ACESA na comunidade, a chama
da esperança e do respeito pelas tradições.
O Encomendar das Almas no concelho de Nisa
A tradição “Encomendar as Almas” remonta à Idade Média e
ainda hoje é praticada em muitos locais do país, principalmente no norte e na
Beira Baixa e até no Brasil, principalmente nas regiões onde mais se fez sentir
a presença colonizadora portuguesa, nomeadamente, no Estado de Minas Gerais, de
onde nos chegam vários relatos sobre esta prática ancestral.
No concelho de Nisa caiu, há muito, em desuso, havendo
notícia de que era um rito corrente em Nisa, Montalvão e Amieira do Tejo.
Em Nisa e de acordo com José Francisco Figueiredo (1)
era uso pela Quaresma “especialmente na Semana Santa, encomendar as almas. Um
terceto ou quarteto de executantes da filarmónica, acompanhados de várias
cantoras, percorria as ruas da localidade a altas horas da noite, entoando, em
funéreo acento, algumas quadras alusivas às penas sofridas pelas almas do
Purgatório. Este costume acabou por completo, assim como o de rezar o terço com
acompanhamento de vários cânticos, que diariamente congregava, em casas
particulares, dezenas de mulheres da vizinhança.”
Não menos importante e pelo seu valor religioso e
etnográfico, deixamos para registo o ritual da “Encomendação das Almas, em
Amieira do Tejo, tal qual nos é descrito no livro “Amieira do antigo priorado
do Crato” (2)
Durante a Quaresma, geralmente nas terças ou sextas-feiras
de cada semana, grupos de rapazes e raparigas, chefiados por algumas pessoas de
mais idade, que antes tinham sido os seus ensaiadores, percorriam, por volta da
meia-noite, todos, ou pelo menos, os principais Passos, como o da porta da
Igreja, o da Praça, e o do Calvário, onde, numa toada plangente e sentimental,
cantavam em coro, algumas vezes acompanhados por um pífaro pastoril ou
harmónio, as quadras que se seguem, assim falando àquela hora e por aquela
forma aos sentimentos de piedade das pessoas que, nas suas camas, as escutavam,
rezando, quando eles o pediam, um Padre-Nosso e Ave-Maria:
Cristandade tão unida:
Ouvi gritos e ais
Dos que estão na outra
vida,
As almas dos nossos
pais
Toda a noite e todo o
dia,
Sempre estão numa
agonia,
Pedindo que lhes rezem
Padre-Nosso e Ave-Maria.
E após uma pausa para se rezarem o P.N e A.M., prosseguiam:
Gritam contra os seus
herdeiros
A quem os seus bens
deixaram,
Gritam contra seus
parentes,
Que neste mundo
ficaram,
E contra o seu amigo,
Que nem sequer o
alivia
Com um Padre-Nosso e
Ave-Maria.
NOTAS
(1) – José Francisco Figueiredo – “Monografia da Notável Vila de Nisa”
(2) Tude de Sousa e Francisco Vieira
Rasquilho – “Amieira do Antigo Priorado
do Crato”
in "Alto Alentejo" - nº 320 - 20/3/2013