23.11.12

À FLOR DA PELE - Subsídios para a História da Toponímia de Nisa (1)


As ruas, tal como as pessoas têm a sua história. Histórias onde entram muitas outras, mais pequenas, pedaços de épocas tão diferentes e nas quais se entrecruzam a tristeza e a alegria, a dor e a festa, a guerra e a paz, o individual e o colectivo.
As ruas, tal como as pessoas, também têm um nome: nomes que podem dizer muito, quase tudo, ou que nada significam. Algumas até, tiveram já vários baptismos, no bom estilo “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, sofreram atentados e amputações, “viram” desaparecer um riquíssimo património histórico-cultural.
As ruas, as terras, são um pouco do que nós somos e, fazendo parte da nossa memória colectiva, da nossa identidade sociocultural merecem que olhemos para elas com consideração e respeito.
Deixemos o alerta e caminhemos...
A PRAÇA
O lugar mais importante
Que temos na nossa terra,
É a Praça do Município
Que tanta beleza encerra.

Tem uma bonita Igreja
E uma centenária Fonte;
A Câmara, o Asilo
E o Pelourinho defronte. (1)
Há em todas as terras do Alentejo, um espaço que povoa as memórias de infância, confluência de novos e velhos, retiro de brincadeiras e vivências que o tempo não consegue apagar.
Manuel da Fonseca descreve-o, admiravelmente, como “o Largo”.
O Largo, em Nisa, era a Praça, centro das nossas atenções, quartel-general improvisado de tantas brincadeiras, de grandes “conspirações” e não menos famosos planos de aventuras, em que a fantasia era fértil. A Praça, foi o meu berço e residência de infância…
Ali jogávamos à bola, com a redondinha feita de trapos enfiados numa meia, os pés descalços, sentindo a rudeza do solo e com o imenso terreiro por nossa conta, até que os gritos do rapazio incomodassem os senhores da Câmara e nos mandassem, como saudação, a guarda (pouco) republicana. Depois era a debandada geral...
A Praça tinha um rosto diferente nesse tempo. Eram raros os automóveis, dois metros e pouco de calçada portuguesa em toda a volta e a parte central, em terra batida, era zona conquistada por nós.
Bola, jogo do pião, da pata, hóquei (sem patins e sem calçado que o tempo não se compadecia com esses luxos), uns cajados de improviso, imitando os sticks do Velasco, Moreira, Adrião e Bouçós, hoquistas elevados à categoria de heróis e que mantinham bem alto a nossa auto-estima patriótica.
Hoje, está transfigurada a Praça. A taberna à esquina da Ruinha, onde os rapazes das sortes e os acompanhantes das bodas faziam paragem obrigatória, deixou de existir.
 Um canteiro ajardinado, minúsculo, ocupa agora o espaço onde outrora estava a casa em que nasci, no extremo com a Rua Direita.
Do enorme espaço central, ficou apenas uma sentida recordação.
É certo que agora a Praça tem laranjeiras em volta, bancos de pedra, um jardim e, bem no centro cumpriu-se um dos desejos que o professor José Francisco Figueiredo já não chegou a ver concretizar: a implantação do pelourinho, símbolo do poder municipal.
Concluíram-se as obras em 1969 e as autoridades municipais devem ter tido um trabalhão para conseguirem reunir os diversos elementos em mármore, do pelourinho, espalhados por vários locais de Nisa.
Na Praça, um belo edifício religioso: a Igreja da Misericórdia, entalada entre o antigo Hospital do mesmo nome e o edifício da Câmara. A igreja remonta ao século XVI.
A seu lado, a casa sede do Município. Do século XVIII e, primitivamente, mais pequeno que o actual. (2)
Ainda na Praça, além do imponente edifício da Fundação Lopes Tavares, onde funciona actualmente a Misericórdia de Nisa, uma bela fonte em cantaria: a Fonte do Frade.
Diz o prof. José Francisco Figueiredo na sua Monografia da Notável Vila de Nisa que a fonte foi concluída em 1726 tendo um alto e sólido frontispício de granito, duas bicas, espaçoso chafariz e a nascente era a mais abundante de todas as fontes de outrora.
A Fonte do Frade foi implantada no caminho de Nisa para a Senhora da Graça, mais ou menos no sítio onde hoje estão as ruínas do antigo lavadouro municipal. Dizem-nos pessoas idosas que a fonte ocupava uma área bastante maior do que aquela onde hoje se encontra na Praça.
Voltamos à Praça do Município e à fonte. Aqui vinha o ti Camilo buscar água para o seu jumento e para abastecimento próprio. Dali se abasteciam a maior parte das casas da Vila, até à implantação da rede domiciliária de águas.
Ali se realizou, na fonte, um dos poucos e mais belos documentários feitos pela RTP, em 1962, por intermédio do nisense Baptista Rosa.
É esta a Praça nova, moderna, socializada. Cruzam-na a toda a hora os automóveis, as pessoas apressadas e de papelada na mão.
Os velhos, no Verão, aceitam o desconforto dos bancos de granito, em troca da sombra e de uns momentos de conversa.
Desapareceu aquele espaço térreo onde brincávamos até para lá do sol posto, corríamos, saltávamos ou atirávamos o pião e a pata.
O grande largo que se tornava pequeno, quando, a uma voz, fugíamos a sete pés à frente da Guarda.
Está ali a Praça. Moderna, bela, funcional, para certos gostos. Colocaram o pelourinho numa redoma, cercado de arbustos que são árvores, de placas de identificação que nada informam, esconderam-no, literalmente, como se fosse algum monstro e não motivo de orgulho, história e memória.
Atravancada de carros e de obstáculos, a Praça é apenas uma imagem travestida daquele largo enorme e nosso, onde se ouviam os pregões do ti Relvas, as imprecauções do Adolfo e passavam as procissões, em cadência solene, sobre o chão atapetado de flores e verdura.

A PORTA DA VILA
A Rua Direita, que deixámos para trás, há-de merecer um escrito próprio. Estamos na Porta da Vila, principal entrada da primitiva Nisa e que D. Dinis mandou edificar.
 Ao espaçoso largo defronte, o mais central e monumental de Nisa, foi posto em 1919 o nome de Serpa Pinto, numa homenagem dos edis da altura aos feitos do explorador luso que desbravou o sertão africano.
Em 1981, novo baptismo. Por deliberação da Assembleia Municipal e no âmbito das comemorações dos 700 anos da fundação da vila, pretendeu-se homenagear o Dr. António Granja, ilustre médico, homem simples e dedicado ao bem comum, adversário do regime salazarista, republicano convicto, dando ao largo o seu nome.
A decisão do executivo municipal, não correspondeu, no entanto, nem à letra nem ao espírito da proposta.
O nome do insigne médico deveria ir para uma nova rua, das diversas que na altura se abriram. Nunca ao principal largo de Nisa.
Pior ainda foi feito com o busto do Dr. António Granja.
A solução arquitectónica de conjunto não foi a mais feliz e está em oposição ao carácter do médico e do cidadão de grande dimensão social que foi o Dr. Granja.
Um busto simples num espaço ajardinado no centro, como aquele que antes existia, estaria mais a condizer com o viver simples e o cidadão de corpo inteiro que foi o Dr. Granja.
Quanto ao largo, por muitas voltas que a terra dê  e por muitas designações que lhe ponham há-de ser sempre o da “Porta da Vila”.
Porta da Vila, entrada no “Japão” e na “Vila”, um espaço de memórias e vivências que toca, bem no fundo, a cada um dos nisenses.
A Porta da Vila era o “centro do mundo”. Um rodopio de gente a entrar e a sair, as inúmeras lojas de mercearias e salsicharia, padaria, de venda de frutas e hortaliças, sapateiros, barbeiros, farmácia e até, pasme-se, de electrodomésticos.
O primeiro café de Nisa “nasceu” ali, em Dezembro de 1945 e chamava-se “Restauração”, situado nos baixos da casa do senhor Carmona. Havia também, mais antigo e com o pomposo nome de Cervejaria (e casa de chá), o estabelecimento do senhor António Alberto, uma simpatia, e da senhora Joana, frequentada, sobretudo, pelos professores primários. Era ali que se compravam os “bolinhos da poupinha”  e os rebuçados de meio tostão e nos sujeitávamos, por mais um rebuçado, a um “carôlo” brincalhão do senhor António Alberto.
A Porta da Vila era um espaço de vida e de liberdade acorrentada. Por ali passavam inúmeras vezes, principalmente á noite, os guardas-republicanos, na sua farda azul escura com laivos verdes, vigiando o largo e as pessoas, “promovendo” a manutenção da boa ordem social.
Ao menor sinal de reunião de três ou mais pessoas surgia logo o aviso: “Nada de ajuntamentos, toca a dispersar!”. Tempos tenebrosos, esses, em que a brincadeira de crianças ou a conversa entre adultos eram motivo de suspeita, de incriminação e, quantas vezes, de ida ao posto.
Hoje, está vazio o largo. Vazio de gente, de iluminação, de vida, de alegria. Mete dó, o principal largo histórico da minha terra. Há ali floreiras sem flores, casas sem gente, degradadas, a necessitarem de cara lavada e reparação urgente. Noutras terras, a edilidade preocupa-se com estas coisas. Aqui, para ser diferente, cria entraves, coloca barreiras, instala burocracias que estimulam o desleixo e o abandono.
Na Porta da Vila começa o “centro histórico” de Nisa. Nome pomposo para a zona habitacional mais degradada da vila e para a qual têm “chovido” projectos e intenções nunca concretizados.
Vou caminhando, o largo fica para trás e a ele voltarei. Recupero a imagem de bonomia do senhor António Alberto, a dinâmica e o frenesim do dr. Aniceto, a alma boa e generosa da senhora Josefa Cebolais, o aprumo e a arrumação da mercearia do senhor António Jorge e lanço ainda um último olhar para o local onde esteve a sapataria na qual meu pai ganhava o seu pão.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 7/11/2012
(1) - Paralta, Maria de Lourdes - "Memorial em verso da notável Vila de Nisa, sua história, gentes, usos e costumes"
(2) - Figueiredo, José Francisco - "Monografia da notável Vila de Nisa"