22.9.24

OPINIÃO: Fogo que arde sem saber

Se o primeiro-ministro fosse uma pessoa qualquer, falando de peito aberto sobre um flagelo coletivo, seria entendível. Se o primeiro-ministro fosse uma pessoa qualquer, cerrando os dentes sobre uma fatalidade que se repete, seria compreensível. Mas o primeiro-ministro não é uma pessoa qualquer. E por essa razão não deve encarnar no cidadão comum que pugna por justiça na mesa do café ou na sala de jantar de casa. Não deve incendiar a praça pública com declarações em que sugere que os fogos que assolaram o país foram resultado de ações criminosas ou da conjugação de interesses económicos obscuros. Em primeiro lugar, porque desresponsabiliza, de forma indireta, todas as asneiras que, há anos, o Estado português tem patrocinado em matéria de prevenção de incêndios, de acompanhamento da floresta e de reforma do sistema de Proteção Civil. Em segundo lugar, e mais grave, porque não apresentou provas e porque estas insinuações não encontram respaldo na realidade estatística. Apenas um terço dos fogos teve ação criminosa direta e a larga maioria das ignições está relacionada com a incúria dos portugueses. Os incendiários detidos triplicaram na última década, mas elegê-los como alvo preferencial é, além de perigoso, pouco rigoroso. A tempestade perfeita de chamas tem-se alimentado, sobretudo, do cruzamento de deficientes políticas públicas e de uma confrangedora falta de cultura cívica de demasiados cidadãos. Aos decisores, e aos governos, cabe a missão de criar condições (e leis) para que os problemas de fundo se resolvam ou atenuem. Investigar e prender é uma missão das entidades policiais e judiciárias. É verdade que estamos cansados de equipas especiais e comissões criadas à pressa em cima dos acontecimentos, mas esse torpor não pode ser combatido com posições públicas populistas e incendiárias. Luís Montenegro já mostrou que sabe fazer melhor. Pedro Ivo Carvalho – Jornal de Notícias - 21 setembro, 2024