27.5.24

OPINIÃO: Jornalismo de lama, jornalismo oficial

Numa conferência feita em Lisboa no dia 28 de Abril, Benoît Bréville, director do Le Monde diplomatique, referiu a forma como se tem vindo a instalar um «pensamento único mediático», uma espécie de «macartismo contemporâneo» feito de novas censuras e novas repressões, que procura controlar, afastar ou silenciar o que trata como «discurso dissidente». Em Portugal, esta realidade acentuou-se nos últimos anos, e mais ainda nos últimos meses, configurando um jornalismo sem contexto, sem rigor, sem pluralismo, sem respeito pela expressão de opiniões diferentes. Hoje, a crise da intermediação mediática não é só um problema do jornalismo e dos jornalistas, é uma ameaça séria à democracia. Não pode ser restringida a jornais ou canais de televisão que nunca foram considerados «de referência», nem a uma programação exterior às direcções de informação. Impregna o jornalismo de política e de economia, como já antes o de desporto e o internacional.
Politizar a questão dos media é hoje urgente para defender o futuro da democracia. Muito se tem escrito nas páginas deste jornal sobre o modo como a crise de um modelo de negócio dos media assente na publicidade favoreceu precariedade e baixos salários no sector, num contexto geral de enfraquecimento de direitos laborais. Ou sobre a forma como os media, para aumentar influência, receitas e audiências, passaram a apostar num jornalismo que foi cedendo espaço de investigação e reportagem ao comentário infinito, feito de duelos inflamados e de um dissenso fulanizado, rude e ofensivo, que de facto transforma divergência em dissidência. Quem procura dedicar algum tempo do seu dia a informar-se depara, cada vez mais, com um jornalismo de lama. Não é nas redes sociais, como os jornalistas gostam de acusar. É certo que estas reproduzem, a partir de vídeos curtos e recortados (TikToks, Reels), esses mesmos momentos «inflamados» em que algum debatente agride outro debatente (por enquanto moralmente), de forma repetida, para o intimidar, fragilizar, humilhar, para limitar a capacidade que ele terá de expor os seus pontos de vista. Mas quantas vezes as redes sociais não o fazem a partir de vídeos produzidos e destacados pelos próprios órgãos de informação? Infelizmente, este novo bullying que vemos nos media não tem suscitado na sociedade a mesma crítica que é reservada ao bullying quando este ocorre em contexto escolar. Pior ainda: enquanto o campo mediático parece pensar que é assim que torna lucrativo o negócio dos media, o campo da direita político-partidária parece ter concluído que é promovendo-o que ganha votos.
O modelo terá resultado com o Chega de André Ventura, que teve um enorme crescimento nas eleições legislativas de 10 de Março? Pois agora a Aliança Democrática (AD) aposta num cabeça de lista para as eleições europeias, Sebastião Bugalho, que ganhou visibilidade pública num processo semelhante ao de Ventura de utilização do comentário político televisivo, no caso de Bugalho na CNN e na SIC Notícias. Este espaço foi gerido pelo agora candidato da AD como oportunidade para exibir grandes capacidades, para mostrar esperteza, para interromper, desestabilizar e ofender outros participantes no debate - para se «impor», diria o próprio talvez. E foi gerido pela estação como oportunidade para o «viralizar», para criar um «fenómeno». Note-se, aliás, que a estação nunca se demarcou do estilo ofensivo e desrespeitador, em tudo contrário ao debate democrático, com que o seu novo «fenómeno» intervinha, em particular numa altura em que era apresentado aos telespectadores (e aos leitores do Expresso) como jornalista e analista político, numa pretensa «neutralidade» cuja falta Bugalho chegava a criticar nos outros, mas que, sobretudo, fazia esquecer que já fora candidato a eleições pelo CDS-Partido Popular.
A estação não se demarcou, mas fez mais: num dia em que o comentariado e as direcções editoriais iam revelando a composição do governo de Luís Montenegro, a 28 de Março, Sebastião Bugalho, em vez de expor a sua opinião e respeitar a dos demais, acumulou intervenções ofensivas do bom nome dos participantes: «está a ser desonesto do ponto de vista intelectual», «não sabe do que está a falar», «está a expressar opiniões contrárias aos factos», «não engane os espectadores da SIC», «tente não mentir, não seja desonesto», tudo isto mil vezes repetido. Perante o incómodo dos participantes, o pivô do programa minimiza o acontecido chamando-lhe «discussão acalorada» e, quando dá a palavra à pessoa alvo dos insultos, pergunta: «Não vão voltar, pois não?»… Este uso do plural, «vão», forma inaceitável de equivalência entre agressor e agredido que é uma segunda agressão, também não motivou um pedido de desculpas por parte do canal.
Este jornalismo de dissenso, de lama, não dá apenas audiências, visibilidade e talvez votos. É também uma forma de saturar o espaço público e mediático, para esconder os temas e os pontos de vista que nele são silenciados. Veja-se só um exemplo, que mostra como assuntos fundamentais ligados à política económica e orçamental da União Europeia não suscitam as mesmas «discussões acaloradas» intermináveis. Nestes temas, o jornalismo reproduz o que é dito pelas fontes oficiais das instituições europeias, quando muito juntando declarações de alguns eurodeputados com elas alinhados - as fontes oficiais já tendem a citá-los nos comunicados de imprensa. Jornalismo muito asseado, nestes casos, sem lama, o que é bom, mas também sem crítica, sem questionar os fundamentos nem as consequências das escolhas feitas pelas instituições. Sem escrutínio jornalístico e democrático, portanto, mesmo estando o país à beira de eleições europeias.
Nas vésperas do 25 de Abril, o Parlamento Europeu aprovou as três propostas para as novas regras da governação económica da União Europeia (1). A generalidade dos media, mesmo referindo o regresso, após suspensão provocada pela pandemia de Covid-19, das regras orçamentais que impõem limites ao défice (3% do produto interno bruto (PIB)) e à dívida (60%), bem como as sanções associadas, limitou-se a listar o que muda e o que se mantém, a esclarecer alguns conceitos, reproduzindo os termos tranquilizadores usados pela União para descrever o que aí vem (regras mais «flexíveis», «adaptadas a cada contexto nacional», hipótese de «prorrogar prazos em caso de necessidade», etc.).
É certo que o trabalho de leitura e compreensão destes documentos não é fácil, e muito menos agradável: eles estão propositadamente desenhados para isso, num esforço de opacidade que dá frutos. Mas devia ser impossível que o jornalismo se esquivasse a um debate aprofundado sobre o novo quadro europeu e a explicitar de forma simples, mas crítica, o que as fontes oficiais não dizem. Esse trabalho é feito, nesta edição, no artigo de Nuno Teles e Matheus Dias intitulado «As eleições europeias e os novos desafios à soberania». Algumas ideias fundamentais que urge debater até são fáceis de comunicar. O fim da suspensão das metas do défice e da dívida anuncia o regresso dos procedimentos por défice excessivo e novas sanções. O reforço dos poderes da Comissão Europeia, e até dos nada independentes Conselhos de Finanças Públicas, tornam cada vez mais difícil aos Estados fazerem escolhas soberanas em aspectos como o investimento nos serviços públicos ou no combate às alterações climáticas. Os ajustamentos serão feitos através de cortes nas despesas, a menos que elas sejam militares.
Em suma, de um lado o aumento do poder discricionário e repressivo da Comissão, do outro o direito dos Estados a conformarem-se com as escolhas desta última, preferencialmente antes até de cada submissão dos seus planos orçamentais. De um lado, um jornalismo que empurra «dissidentes» para a lama; do outro, um jornalismo que reproduz fontes oficiais para não questionar o pensamento único neoliberal. Até regressar a nova austeridade?
* Sandra Monteiro in le monde diplomatique (edição portuguesa)
(1) Disponíveis em «Parlamento aprova novas regras orçamentais da União Europeia - Comunicado de Imprensa», 23 de Abril de 2024, www.europarl.europa.eu