13.2.16

DO ALTO DO TALEFE (6): A Juliena

As rodas chiavam no eixo, a pedir massa consistente. O tic-toc das ferraduras da minha burra Juliena embalava-me os sentidos, enquanto o corpo bamboleava ao sabor das covas da azinhaga.
A carroça antiga, herança do meu avô Luís, passara junto ao Bacelo do Ti Zé da Filhó, e já rolava perto da Pedra da Menacha quando a Juliena parou e na sua teimosia asinina, nem apara trás nem para diante.
Desci, olhei-a de frente, afaguei-a, falei-lhe mansamente e perscrutei o horizonte.
Castelos de nuvens negras corriam apressadas e uma aragem húmida prenunciava uma violenta tempestade.
Mal tive tempo para soltar a Juliena e correr para me refugiar num palheiro semi abandonado quando, empurrada pelo vento, a chuva desabou. Quilos e quilos de água sob a forma de grossas gotas rodopiavam, chocavam entre si e desabavam descontroladas sobre o chão.
Era bonita a Juliena e, arreada a preceito, fazia perder o tino ao burro do Ti “Adrieno” Cartaxo.
Então não é que, enquanto para me distrair enrolava um pedaço de tabaco no papel de mortalha e lutava contra o vento para acender um humedecido fósforo, a Juliena largou disparada.
- Burra maluca, não vai longe!, pensei para com os botões da jaqueta.
Enquanto a água caía torrencialmente, para delícia dos que em Lisboa e no Porto faziam contas à produção das centrais hidroeléctricas, eu continuava debaixo do frágil abrigo que a providência me colocara ao alcance.
Uma longa meia hora passou, até que o arco-íris se iluminasse sobre a serra de Castelo de Vide e eu me atrevesse a procurar a Juliena.
De capote a adejar ao vento, chapéu enterrado até às orelhas, avancei pelas tapadas, enquanto o negrume da tempestade se alongava sobre Montalvão.
Já desesperava de encontrar o meu transporte, quando o zurrar da Juliena me colocou no caminho certo. Apresso o passo e, quando ultrapasso o morro por trás do qual soara o som familiar, eis que dou de caras com o burro do Ti Adrieno Cartaxo a afastar-se com olhar malandro e a Juliena em posse comprometida, com os arreios desalinhados.
Enquanto em Lisboa, em gabinetes alcatifados se discutiam as mais valias financeiras da época das chuvas, enquanto nos céus, modernos aviões sobrevoavam o planalto da meseta ibérica, a Juliena e o burro do Ti Cartaxo alheios aos interesses económico-financeiros, zurravam e davam largas aos instintos da Natureza. Mal sabiam eles que alguns anos depois a sua raça estaria à beira da extinção.
Era simpática a Juliena como valente era o burro do Ti Cartaxo, hoje substituídos pelas máquinas movidas a gasóleo verde que facilitam a faina agrícola, mas que não zurram e não nos acordam de madrugada, com os sons alegres dos seus arreios de guizos.
Que querem os leitores. Deu-me para aqui! Tenho saudades das idas ao S. Silvestre, à Srª da “Arridonda”, ao Santo Isidro, à Senhora dos Prazeres e à Comenda, na velha carroça decorada e, puxada com a força da pachorrenta Juliena.

Zé de Nisa - "Jornal de Nisa nº 29 (17 Mar. 1999)