Escritor, cartoonista e pintor,
José Vilhena foi o grande sátiro da condição portuguesa, em ditadura e em
liberdade, sem poupar nos alvos e com gosto declarado pelo erotismo. Morreu
este sábado, aos 88 anos.
Cartoonista, humorista, escritor e
pintor. Quatro condições interligadas na vida e obra de um homem que, desde a
década de 1950, se dedicou a satirizar, sem poupar ninguém, dos poderosos ao
povo oprimido, a realidade política e social do país em que nasceu. Antes da
Revolução de Abril viveu com a censura à perna de forma quase ininterrupta, ou
não tivesse assinado quase seis dezenas de livros, todos censurados, todos
vendidos ao seu público fiel por baixo da mesa nas tabacarias.
Onze dias depois do 25 de Abril de
1974, começou a fazer a sua cronologia da revolução em Gaiola Aberta , o seu
título mais célebre. “One man show”, trabalhador verdadeiramente independente
que se responsabilizava sozinho por todo o processo de elaboração e produção
dos seus livros e revistas, José Vilhena, nome incontornável do humor
português, na linha de um Bordalo Pinheiro, mas contemporâneo da libertação
sexual das décadas de 1960-70 (e notava-se muito, ou não fosse o corpo feminino
presença constante na sua obra), morreu este sábado, aos 88 anos, vítima de
“doença
prolongada”, como se lê no site O incorrigível e manhoso Vilhena
(www.vilhena.me), gerido pelo seu sobrinho Luís Vilhena. Encontrava-se
internado no Hospital São Francisco Xavier.
O título do site supracitado é uma
referência directa a um dos muitos relatórios da comissão de censura do Estado
Novo dedicados às suas publicações. Nele, emitido em 1965, lia-se: “O
incorrigível e manhoso ‘Vilhena’ não quis deixar acabar este ano de 1965 sem
lançar a público mais uma das suas produções deletérias que por artes ocultas
circulam sempre a despeito das proibições que sobre elas incidem. Posto hoje à
venda, segundo creio” – escreve o autor do relatório –, “não encontro neste
livro uma única página que possa ser autorizável. Portanto, proponho a sua
rigorosa proibição”.
De si próprio, Vilhena dizia ser
“uma espécie de trapezista”: “A malta comprava os meus livros porque achava que
no dia seguinte eu ia preso”. E foi, por três vezes, em 1962, 1964 e 1966.
Muito a propósito, Rui Zink recorda ao PÚBLICO a definição de censura que ouviu
a José Vilhena: “Censura é a técnica de separar o trigo do joio, a fim de
publicar o joio” – “também se aplica aos jornais de hoje”, acrescenta.
Zink, que privou de perto com José
Vilhena, descreve-o como “um diamante no meio de ovelhas murchas”, alguém que,
seguindo a máxima de Groucho Marx, se recusava a pertencer a qualquer clube. “O
Aquilino Ribeiro chegou a tentar levá-lo para um clube, para a Associação
Portuguesa de Escritores, mas ele declinou timidamente dizendo que não era
escritor”. A actividade diversificada de Vilhena, aponta Rui Zink, nasce, de
resto, da inexistência de escritores populares de humor em Portugal. “Do que
ele gostava era de desenhar, mas, dada essa circunstância, acabou por se tornar
cartoonista, escritor, editor, distribuidor.”
Nascido a 7 de Julho de 1927 em
Figueira de Castelo Rodrigo, José Vilhena frequentou a Escola de Belas-Artes do
Porto, inserido no curso de arquitectura que não chegaria a concluir, culpa do
trabalho que começara a fazer para o Diário de Lisboa, Cara Alegre e O Mundo
Ri, que co-fundou na década de 1950.
Trabalhou o humor de diversas
formas, recorrendo a escrita literária, à ilustração, ao cartoon ou à
fotomontagem. Esta última expressão criativa valeu mesmo a um inusitado
protagonismo internacional, quando no início dos anos 1980 José Vilhena é alvo
de um processo interposto por Carolina do Mónaco, na sequência de uma
fotomontagem em que, parodiando o anúncio de uma marca de brandy, colocou a
princesa “a aquecer o seu copo de uma maneira original”, recordava em 2003 ao
Correio da Manhã.
Entre a sua bora, destacam-se,
antes do 25 de Abril, obras como História da Pulhice Humana (1961), O Filho da
Mãe (1970) ou Branca de Neve e os 700 Anões (1962), esta incluída na série
Livros Proibidos editada com o PÚBLICO. É nesse período que José Vilhena mais
brilha, considera Rui Zink. “Os retratos que fez daquele morno Portugal de
Salazar são maravilhosos. Depois do 25 de Abril, as pessoas ganharam coragem e
surgiram concorrentes mais jovens, mais adequados ao tempo, mais ágeis, mais à
esquerda. Há sempre um sacana que gosta mais de liberdade do que nós quando já
não há riscos a correr”, ironiza. Durante a ditadura, José Vilhena era “uma
estrela solitária a fazer aquele tipo de humor e, mesmo as pessoas que não liam
os livros dele conheciam as histórias dos seus livros”, recorda Zink. Segundo o
escritor, “foi o grande humorista transversal de antes do 25 de Abril e teve a
importância do Herman [José] e dos Gatos Fedorento juntos”.
Mário Lopes in "Público" 03/10/2015