21.3.15

M de Março e de Memórias


A vida na fábrica


Insaciável, a devorar energias, a fábrica chama. O seu apelo domina a vila adormecida e galga os campos.
As mulheres pegam no xaile e saem a mastigar a côdea do pão de mistura. Vão a passo ligeiro, que o portão não se abre para as que chegam mais tarde.
Levam no corpo as fadigas da véspera. Levam nos olhos as amarguras de sempre.
Vão entrar pela bocarra, faminta de energias.
A buzina lança o último grito. Há mulheres que correm, tairocando para não perderem a féria. E o portão cerra-se. Duas ainda ouviram os ferrolhos pesados e ficaram a olhar o portão, compreendendo o destino do dia.
E voltam pelo mesmo caminho, mais mirradas, como se ouvissem a bramação em casa.
Lá dentro tudo se move. Giram os tambores e fogem as correias. E os teares não param. As mulheres também. Tudo tocado no mesmo frenesi de loucura.
As palavras são hostis. Para matar o tempo e esquecer penas, há bocas que querem cantar. Mas da gerência veio a ordem para que se trabalhe em silêncio. Só se ouvem as canções dos teares.

Alves Redol in “Marés”
Desenho de Álvaro Cunhal