De Bissau ao Mindelo, um abraço de gratidão
ao Bana
O Bana foi dos primeiros grandes artistas
africanos que conheci. A sua “Pomba” ou o “António escadeirode”, animavam as
noites de fim de semana no Pilão ou noutros bairros sem luz de Bissau, refúgios
com o seu quê de aventureiro, a que muitos militares recorriam na ânsia de
esquecer a tortura da guerra e a dor da solidão e da ausência.
No início dos anos setenta, naqueles bairros periféricos e de má fama de
Bissau, mas cheios de gente boa, onde se vivia miseravelmente, mas nunca faltava a alegria, eram quase
obrigatórias as nossas visitas, principalmente nos fins-de-semana em que havia
ainda alguns "pesos" nos bolsos. Cantávamos e dançávamos ao som das “coladeras” e
das “mornas” tocadas num gira-discos a pilhas, em tabancas de terra batida,
iluminadas a petromax (um “luxo” apenas de algumas) ou à luz mortiça da torcida
embebida em petróleo numa garrafa.
Era um ambiente quase medieval, mas ao qual
habituávamos a vista e os sentidos em poucos minutos. Tinha de ser. Estávamos
em guerra, apesar de tudo, e não em Bali ou numa qualquer estância balnear do
Pacífico. Mas a música das “ilhas”, do Bana e de outras artistas, transportava-nos
para um estado de acalmia e de paz, fazia-nos esquecer a nossa condição de
ocupantes de terra estrangeira e como que um pacto de "não-agressão" se estabelecia naquelas noites africanas cheias luar e sons mágicos.
Bana actuou algumas vezes em Bissau com o
grupo “Voz de Cabo Verde” que integrava excelentes músicos, entre eles, Luís
Morais, um solista de primeira água e que viria muito justamente a ter projecção
internacional, aquém, talvez, do seu real valor.
Bana, para além de um grande cantor, era uma
figura de aspecto impressionante, nos seus quase dois metros de altura e na
simplicidade com que actuava, de sorriso permanente e rasgado, um timbre de voz
forte e firme que tanto projectava as canções mais alegres e ritmadas como as “coladeras”,
como, logo a seguir, convidava a uma “visita” contida e comovente, a Cabo
Verde, às suas ilhas e a conhecermos o seu povo humilde e pobre, através das
mornas e dos sons pungentes das guitarras e dos violinos.
O Bana morreu esta madrugada, aos 81 anos, mais
de sessenta dos quais a cantar e divulgar a música de Cabo Verde, a “nha terra”.
Devo-lhe o gosto pela música cabo-verdeana e a descoberta de intérpretes
(cantores e músicos) como Cesária Évora, Ildo Lobo, Luís Morais, Codé di Dona,
Travadinha (todos já falecidos) e de grupos como o referido “Voz de Cabo Verde”
Tubarões, Bulimundo, Finansom e outros, mais recentes como os Ferro Gaita. Impressiona,
aliás, como um país tão pequeno, tem tantas vozes e músicos de qualidade e que
tenho descoberto nos últimos anos, desde Mayra Andrade, Lura, Zeca di Nha
Reinalda, Tito Paris, Paulino Vieira, Tcheka e tantos outros.
O Bana morreu e com ele parte a arte de cantar e comunicar, a alma de Cabo Verde, um dos maiores cantantes da lusofonia.
Tive o gosto de o conhecer e recordo-o com profundo respeito, com reconhecimento devido a um grande intérprete que com as suas canções tornou menos penosos, dois anos de exílio forçado em terras africanas.
Como eu, muitos milhares de portugueses.
Morreu o Bana. Cantemos e recordemos as suas canções, a forma mais elevada de lhe testemunharmos a nossa admiração.
Mário Mendes