Para o Fernando.
Para os seus pais, irmãos e
sobrinhas. Aos seus alunos e colegas da Escola Secundária Ferreira Dias
Conheci o Fernando Eduardo
Carita em 2001/2002. Foi na esplanada do café «Nilo». Ou melhor: foi ainda nas
antigas mesas do café «Nilo» e não na esplanada, cá fora, pois não era
Primavera, nem Verão, mas um final de Inverno que anunciava o que viria a ser
um belo encontro humano. O Fernando, no seu porte distinto e discreto, com uma
caneta Bic, preta, apontava num pequeno caderno qualquer coisa que, pelo modo
como estava concentrado, deveria ser urgente, belo e necessário. Já há algum
tempo que eu tinha reparado no Fernando. Nesse dia não reprimi a vontade de o
conhecer e levantei-me da minha mesa, onde eu também passava as manhãs de
Sábado a ler ou a não fazer coisa nenhuma, para me dirigir àquela pessoa que -
lembro-me agora - parava de vez em quando de escrever e nos olhava, oblíqua ou
profundamente, regressando, baixando os olhos, à escrita ou à leitura.
Perguntei se me podia sentar e ele, surpreendido mas acolhedor, disse que sim.
Perguntei-lhe se era professor (porque me parecia ter a atitude, a presença dum
professor de facto) e o que estava a ler. Educadíssimo, esmerado, sensível a
quem, jovem e provocatório, assim se lhe dirigia de forma curiosa, disse-me que
estava a ler Poesia Vertical, dum poeta chamado Roberto Juarroz. Coindidência
incrível. Também eu estava a ler, não a poesia de Juarroz, mas um ensaio de
António Ramos Rosa sobre a poesia do poeta argentino.
Creio que o nosso encontro - e
as centenas de encontros que a esse se seguiram nos doze anos de partilha e
cumplicidade - teve o condão da poesia e da sua luminosa fraternidade. Nesse
mesmo dia combinamos novo encontro e como morávamos perto foi-se estabelecendo
um tácito acordo. Aos Sábados, e pelo menos duas vezes por semana, era certo o
café da manhã no «Nilo». À tarde, após o almoço, novo café, pretexto para
desfiar de comversas sobre livros, ideias, paixões. A urgência de viver. Entre
2001 e 2010/011 eu e o Fernando perdemos a conta aos jantares e almoços que
fizemos... nestes últimos tempos, por culpa minha, bem menos regulares (talvez
quando nos voltarmos a encontrar possamos, com Juarroz e outros da nossa
confraria, retomar esses jantares e cafés onde a vida irrompia simples, calma e
bela nas palavras que trocávamos...).
O Fernando Eduardo Carita, para
além da amizade profunda aos seus amigos, foi também, para mim, uma espécie de
misterioso orientador de leituras e um cúmplice fazedor de ideias. O Fernando é
das pessoas mais cultas e sensíveis que até hoje conheci. Jamais se envaideceu
com a sua cultura, com o seu transversal saber, que ia da Poesia europeia à
Filosofia, da música à pintura. Bilingue, dominando na perfeição a língua francesa, foi tradutor exímio do poeta belga Yves Namur. Para além desse seu
trabalho como tradutor, publicou três livros de poesia. O primeiro, em 1988, A Obscura
Espiritualidade da Matéria, em edição de autor e, em 2005 e 2008, dois livros:
A Salvação pelo Vazio e A Casa o Caminho, ambos traduzidos por Marie-Claire
Vromans e editados na Taillis Prés. Dum volume que lhe será póstumo, intitulado
O Deus do Inacabado (será também traduzido por Marie-Claire Vromans e com
chancela da editora de Yves Namur), saíram em Agosto de 2011, no número 177 da
revista Colóquio-Letras, dois poemas. Lembro-me da felicidade e surpresa com
que recebeu a notícia dessa publicação. Dava-se a curiosa coincidência de esse
número ser dedicado à «Poesia 61», o ano de nascimento do Fernando. Com os
olhos vivíssimos, o sorriso franco e aberto, numa voz pausada e forte, ora rápida
e incisiva, ora lenta e grave, disse-me: «António, tu já viste isto?! Então
agora já sou um poeta português?...» É que para o Fernando Eduardo Carita,
apesar de as edições dos seus livros serem bilingues, ele queria, na verdade,
que a sua poesia fosse publicada em português. Numa editora portuguesa. Acontecerá,
sem dúvida, por razões óbvias: a sua obra é, quanto a mim, das mais belas
expressões de espiritualidade que a poesia de língua portuguesa recente
produziu. Dar a conhecer o autor de A Salvação pelo Vazio impõe-se.
Fernando Eduardo Carita,
professor, poeta, tradutor, foi alguém com quem partilhei uma fase decisiva do
meu crescimento como homem, também eu professor. É para mim um motivo de
alegria ter ido, em três ocasiões, à escola do Fernando, a Escola Secundária
Ferreira Dias, por ele convidado, falar sobre poesia, sobre Literatura e
cultura. Unia-nos uma forte consciência quanto à urgência da Literatura e da
Cultura no ensino do Português. Cáustico, incisivo, irónico, o Fernando não
hesitava em condenar, em invectivar a mediocridade, o fanatismo, a
ignorância... Sempre com elevação, por muito revoltado que se sentisse em face
duma realidade europeia e portuguesa que, dizia-me, nos iria levar à barbárie
da ignorância... Certas frases do Fernando Eduardo foram, perante o que
vivemos, de uma terrível premonição...
Sei o quanto ele amou ser
professor. Sei o quanto exigia de si próprio para que as aulas fossem esse
encontro de espíritos com a cultura viva que, pela mão da poesia e da
filosofia, que ele sabia integrar como poucos, era para ele o fio condutor das
relações humanas. Em diversas ocasiões lhe disse que os seus alunos ganhavam
imenso ao ter um professor assim. Eles, os seus alunos, bem como os seus
colegas, sabem disso. Todavia, por ser discreto e humilde, respondia-me sempre:
«Não, António. Quem lhes deve agradecer sou eu por me darem a oportunidade de
estar aqui... Eu é que aprendo com eles...»
Aos seus pais - Manuela e João
-, aos seus irmãos - Filipe e João Paulo -, às suas sobrinhas e demais família,
mas aos seus queridos alunos, que nele tiveram um professor raríssimo, as
minhas palavras finais são de paz e de alegria e de entusiasmo. Paz, porque é
necessário tranquilizar os corações (o Fernando merece o seu descanso. O seu
corpo lutou dignamente e ganhou, saiu vitorioso) e alegria e entusiasmo para os
dias que o futuro nos reserva, porque o Fernando estará sempre connosco na sua
poesia e a sua obra chegará longe, assim como a sua memória será, por muitos,
celebrada.
Dele eu vou guardar as
conversas, os encontros, os cafés, a mesa cheia de livros e jornais. A sua
generosidade para comigo. A sua benevolência. A sua inigualável coragem e
constante amizade. Guardarei também estas palavras:
As mãos que colheram
verdadeiramente a rosa
Também colheram as tuas mãos
Eu, das mãos do Fernando, colhi
o seu desejo de viver, a sua serena aceitação do que os dias têm para nós. Ao
mesmo tempo colhi o seu entusiasmo; a sua entusiástica forma de ver que tudo
está em tudo, que nada se perde e em mim o Fernando Carita continuará vivo e
estará comigo.
António Carlos Cortez, Lisboa,
café «Nilo», 22 de Junho de 2013