5.7.13

FERNANDO EDUARDO CARITA (1961-2013): Um Testemunho

 Para o Fernando.
Para os seus pais, irmãos e sobrinhas. Aos seus alunos e colegas da Escola Secundária Ferreira Dias
Conheci o Fernando Eduardo Carita em 2001/2002. Foi na esplanada do café «Nilo». Ou melhor: foi ainda nas antigas mesas do café «Nilo» e não na esplanada, cá fora, pois não era Primavera, nem Verão, mas um final de Inverno que anunciava o que viria a ser um belo encontro humano. O Fernando, no seu porte distinto e discreto, com uma caneta Bic, preta, apontava num pequeno caderno qualquer coisa que, pelo modo como estava concentrado, deveria ser urgente, belo e necessário. Já há algum tempo que eu tinha reparado no Fernando. Nesse dia não reprimi a vontade de o conhecer e levantei-me da minha mesa, onde eu também passava as manhãs de Sábado a ler ou a não fazer coisa nenhuma, para me dirigir àquela pessoa que - lembro-me agora - parava de vez em quando de escrever e nos olhava, oblíqua ou profundamente, regressando, baixando os olhos, à escrita ou à leitura. Perguntei se me podia sentar e ele, surpreendido mas acolhedor, disse que sim. Perguntei-lhe se era professor (porque me parecia ter a atitude, a presença dum professor de facto) e o que estava a ler. Educadíssimo, esmerado, sensível a quem, jovem e provocatório, assim se lhe dirigia de forma curiosa, disse-me que estava a ler Poesia Vertical, dum poeta chamado Roberto Juarroz. Coindidência incrível. Também eu estava a ler, não a poesia de Juarroz, mas um ensaio de António Ramos Rosa sobre a poesia do poeta argentino.
Creio que o nosso encontro - e as centenas de encontros que a esse se seguiram nos doze anos de partilha e cumplicidade - teve o condão da poesia e da sua luminosa fraternidade. Nesse mesmo dia combinamos novo encontro e como morávamos perto foi-se estabelecendo um tácito acordo. Aos Sábados, e pelo menos duas vezes por semana, era certo o café da manhã no «Nilo». À tarde, após o almoço, novo café, pretexto para desfiar de comversas sobre livros, ideias, paixões. A urgência de viver. Entre 2001 e 2010/011 eu e o Fernando perdemos a conta aos jantares e almoços que fizemos... nestes últimos tempos, por culpa minha, bem menos regulares (talvez quando nos voltarmos a encontrar possamos, com Juarroz e outros da nossa confraria, retomar esses jantares e cafés onde a vida irrompia simples, calma e bela nas palavras que trocávamos...).
O Fernando Eduardo Carita, para além da amizade profunda aos seus amigos, foi também, para mim, uma espécie de misterioso orientador de leituras e um cúmplice fazedor de ideias. O Fernando é das pessoas mais cultas e sensíveis que até hoje conheci. Jamais se envaideceu com a sua cultura, com o seu transversal saber, que ia da Poesia europeia à Filosofia, da música à pintura. Bilingue, dominando na perfeição a língua francesa, foi tradutor exímio do poeta belga Yves Namur. Para além desse seu trabalho como tradutor, publicou três livros de poesia. O primeiro, em 1988, A Obscura Espiritualidade da Matéria, em edição de autor e, em 2005 e 2008, dois livros: A Salvação pelo Vazio e A Casa o Caminho, ambos traduzidos por Marie-Claire Vromans e editados na Taillis Prés. Dum volume que lhe será póstumo, intitulado O Deus do Inacabado (será também traduzido por Marie-Claire Vromans e com chancela da editora de Yves Namur), saíram em Agosto de 2011, no número 177 da revista Colóquio-Letras, dois poemas. Lembro-me da felicidade e surpresa com que recebeu a notícia dessa publicação. Dava-se a curiosa coincidência de esse número ser dedicado à «Poesia 61», o ano de nascimento do Fernando. Com os olhos vivíssimos, o sorriso franco e aberto, numa voz pausada e forte, ora rápida e incisiva, ora lenta e grave, disse-me: «António, tu já viste isto?! Então agora já sou um poeta português?...» É que para o Fernando Eduardo Carita, apesar de as edições dos seus livros serem bilingues, ele queria, na verdade, que a sua poesia fosse publicada em português. Numa editora portuguesa. Acontecerá, sem dúvida, por razões óbvias: a sua obra é, quanto a mim, das mais belas expressões de espiritualidade que a poesia de língua portuguesa recente produziu. Dar a conhecer o autor de A Salvação pelo Vazio impõe-se.
Fernando Eduardo Carita, professor, poeta, tradutor, foi alguém com quem partilhei uma fase decisiva do meu crescimento como homem, também eu professor. É para mim um motivo de alegria ter ido, em três ocasiões, à escola do Fernando, a Escola Secundária Ferreira Dias, por ele convidado, falar sobre poesia, sobre Literatura e cultura. Unia-nos uma forte consciência quanto à urgência da Literatura e da Cultura no ensino do Português. Cáustico, incisivo, irónico, o Fernando não hesitava em condenar, em invectivar a mediocridade, o fanatismo, a ignorância... Sempre com elevação, por muito revoltado que se sentisse em face duma realidade europeia e portuguesa que, dizia-me, nos iria levar à barbárie da ignorância... Certas frases do Fernando Eduardo foram, perante o que vivemos, de uma terrível premonição...
 Sei o quanto ele amou ser professor. Sei o quanto exigia de si próprio para que as aulas fossem esse encontro de espíritos com a cultura viva que, pela mão da poesia e da filosofia, que ele sabia integrar como poucos, era para ele o fio condutor das relações humanas. Em diversas ocasiões lhe disse que os seus alunos ganhavam imenso ao ter um professor assim. Eles, os seus alunos, bem como os seus colegas, sabem disso. Todavia, por ser discreto e humilde, respondia-me sempre: «Não, António. Quem lhes deve agradecer sou eu por me darem a oportunidade de estar aqui... Eu é que aprendo com eles...»
 Aos seus pais - Manuela e João -, aos seus irmãos - Filipe e João Paulo -, às suas sobrinhas e demais família, mas aos seus queridos alunos, que nele tiveram um professor raríssimo, as minhas palavras finais são de paz e de alegria e de entusiasmo. Paz, porque é necessário tranquilizar os corações (o Fernando merece o seu descanso. O seu corpo lutou dignamente e ganhou, saiu vitorioso) e alegria e entusiasmo para os dias que o futuro nos reserva, porque o Fernando estará sempre connosco na sua poesia e a sua obra chegará longe, assim como a sua memória será, por muitos, celebrada.
Dele eu vou guardar as conversas, os encontros, os cafés, a mesa cheia de livros e jornais. A sua generosidade para comigo. A sua benevolência. A sua inigualável coragem e constante amizade. Guardarei também estas palavras:
As mãos que colheram verdadeiramente a rosa
Também colheram as tuas mãos
Eu, das mãos do Fernando, colhi o seu desejo de viver, a sua serena aceitação do que os dias têm para nós. Ao mesmo tempo colhi o seu entusiasmo; a sua entusiástica forma de ver que tudo está em tudo, que nada se perde e em mim o Fernando Carita continuará vivo e estará comigo.

António Carlos Cortez, Lisboa, café «Nilo», 22 de Junho de 2013