15.12.24
OPINIÃO: A Questão da Palestina e a crise moral da indiferença
“Onde vocês estavam que deixaram isto acontecer?” Esta talvez seja uma das perguntas que as gerações futuras farão aos seus pais quando conhecerem a história do tempo presente e das investidas israelenses contra Gaza e contra o Líbano. Ao que os pais, encabulados, responderão: “o ‘conflito’ israelo-palestino é complicado demais” ou, ainda, se abrigarão sob uma estória de disputa que sempre existiu - mas que em verdade foi produzida apenas no século XX. A insustentabilidade da guerra presente nos oferece uma oportunidade urgente – talvez já vencida - de balanço sobre o que a civilização humana se dispõe a permitir que seja feito em seu nome – e por quê o autoriza.
As guerras recentes estão inseridas em disputas de natureza estrutural. Disto decorre a impossibilidade da garantia da paz no Oriente Médio sem uma solução permanente para a Questão da Palestina, endereçando as causas fundantes da violência política dela resultante. A convivência pacífica somente poderá ser resgatada na medida em que sua autodeterminação seja garantida, assim como seu direito a um Estado livre, autônomo, democrático, inclusivo e soberano, assegurando o direito de retorno, memória, reparação e de reforma institucional equitativa.
Com dezenas de milhares de vidas ceifadas, o esforço de reconstrução – material e institucional – somente poderá ser empreendido com um cessar-fogo negociado e imediato. A proteção de civis, suas instalações e direitos deve ser garantida sem restrições ou condicionantes. O mesmo vale para o respeito às leis humanitárias e ao direito internacional. Para tanto, se faz imperativa a suspensão imediata da venda de armas, seus componentes e munições – inclusive brasileiras - ao governo israelense.
Completado um ano da guerra, somam-se dolos contra a humanidade e crimes de guerra denunciados por agências internacionais, em franca violação às Convenções de Genebra e ao direito internacional humanitário consuetudinário. Eles incluem o uso de força desproporcional contra civis e infraestrutura civil, ausência de distinção e/ou dano intencional aos chamados indivíduos protegidos, transferência populacional forçada, restrição à entrada de alimentos, remédios, eletricidade e água, resultando em emprego de punição coletiva, e o uso ilegal de munições incendiárias de implementação restrita a zonas não civis. Por fim, a não salvaguarda e preservação do patrimônio, propriedades e instituições culturais violam a Convenção de Haia para a Proteção de Propriedade Cultural.
A permissão gratuita da morte indiscriminada nos coloca defronte à crise moral moderna e de valores humanos fundamentais. Pois se a própria sociedade internacional construiu, coletiva e democraticamente, os instrumentos multilaterais do direito internacional e suas convenções sob a égide da garantia dos direitos fundamentais dos homens e dos cidadãos, sua apatia quando estes mesmos direitos estão sendo francamente violados postula, no mínimo, um colapso institucional, moral e valorativo.
É urgente que a humanidade, representada pelos diferentes países e seus governantes, passem a agir como se as gerações futuras estivessem aqui, como se estivessem observando atentos tudo o que herdarão. O futuro é agora.
Que esta crise convide a comunidade internacional a abandonar o excepcionalismo reservado à Israel, renunciando a qualquer tipo de seletividade ao empenhar-se em garantir equidade quanto ao direito à vida, à liberdade e à humanidade. Talvez então possamos dizer aos nossos filhos, não encabulados ou cabisbaixos, mas orgulhosos, que tivemos a coragem – ainda que tardia - de estar do lado certo da história. Resta-nos questionar se ainda haverá tempo suficiente para tanto.
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Natalia Calfat (Doutora em Ciência Política e presidente do Instituto da Cultura Árabe); João Baptista Vargens (Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-vice-presidente do ICArabe); Soraya Smaili (Professora Titular da Universidade Federal de São Paulo e coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência) e Murched Taha (Professor Livre-Docente da Universidade Federal de São Paulo e ex-presidente do Instituto da Cultura Árabe).