8.3.19

A Vida das Mulheres (2)


Elas...
Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida azeda. Elas chamam ainda escuro os homens, os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo. Elas lavam de piaçaba e sabão amarelo e correm com os insectos para que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos mercados e praças por mais barato. Elas contam centavos. Elas costuram e enfiam malhas em agulhas de pau com as lãs que hão-de manter no corpo o calor da comida que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de água à cinta e um molho de gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas desencardem o fundo dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez meias. Elas areiam o fogão com palha de aço. Elas calcorreiam a cidade a pé e à chuva porque naquele bairro os macacos são caros. Elas correm esbaforidas para não perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e abrem a porta com a mão vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas enterram o dedo mínimo na galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com o garfo de zinco. Elas lambem a ponta do fio de linha para virar a camisa. Elas enchem os pratos. Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a coberta da cama. Elas abrem-se para um homem cansado. Elas também dormem.
Elas...
Elas sobem para cima de um caixote, que ainda são pequenas para chegar à bancada de descamar o peixe. Elas fecham num dia as pregas de papel de mil pacotes de bolachas. Elas espremem as tetas da vaca para o balde apertado entre as pernas. Elas ouvem a matraca de dez teares enquanto a peça cresce adiante, o fio amandado de braço aberto. Elas cortam os dedos nas primeiras vinte e cinco latas até calejar bem. Elas fazem a agulha passar para cá e lá em cruz na tela do tapete. Elas vigiam a última fieira de garrafas, caladas, à espera da sirene. Elas carregam o cesto de azeitona à cabeça, já sem cantar, até que o sol se ponha.
In “Só me ensinaram a servir”
Desenho de Manuel Ribeiro de Pavia