9.1.14

OPINIÃO: O Monte da Salavessa

- Ensaio histórico, social e etnográfico
Desde criança que me desloco com alguma frequência a esta aldeia para visitar os meus avós maternos, guardo recordações do modus vivendi das pessoas, nomeadamente na década de setenta do século XX o que me permitiu ter uma ideia dos sacrifícios vividos através dos tempos pelos salavessenses na sua luta pela sobrevivência.
Tudo começou, há muitos milhões de anos quando se formaram os agrestes solos que predominam a Norte do Monte da Senhora da Graça. No pré-Câmbrico, há 670 milhões de anos era toda esta região um imenso mar interior de águas pouco profundas, onde as argilas se foram depositando, camada sobre camada.
Na sequência de movimentos e compressões da Terra, as camadas emergiram formando cerros xistosos e acentuados declives que caracterizam esta região.
Milhões de anos mais tarde os Homo Sapiens extraíram do solo o xisto para tudo ou quase tudo. Nestas pedras gravaram desenhos, preces aos deuses, construíram abrigos, ergueram monumentos funerários, séculos depois se construíram casas, e com lajes negras se pavimentaram os seus compartimentos. Nos campos os mestres pedreiros levantaram paredes, edificaram-se ermidas, lagares de azeite, moinhos e azenhas para moer o trigo.
Marcadas pela diferença, estas terras condicionaram para sempre os hábitos dos povos que aqui se fixaram. São pequenos os dólmenes aqui encontrados, estreitas as ruas que anos mais tarde se formaram, pequenas as suas casas e a sua capela, grandes os sacrifícios.
Os Montesinhos
Dos pequenos Montes que em tempos existiram nos limítrofes da aldeia, são exemplos, Monte Cimeiro, Monte do Pombo, Monte do Rolo, Monte do pego do Bispo, todos se encontram hoje em plena ruína, e dos chamados “Montes” creio apenas que Salavessa se manteve.
No século XVIII a aldeia parece referenciada como “Monte de Salavessa”. Após o trabalho no campo e quando as pessoas regressavam a casa era vulgar a expressão “vamos até ao Monte” e a designação de Monte ficou até aos nossos dias. Aos habitantes dos Montes chamaram os da vila de Nisa de Montesinhos. Não sei se é impressão minha, mas eram muitas vezes alvo de piadas aqui pelo pessoal da corte e vistos como uns fulanos que estavam ali, tipo uma reserva de índios. Mas os Montesinhos são pessoas como a outra gente.
Não sei quando se ergueram as primeiras casas no então Monte de Salavessa, as Memórias Paroquiais dizem-nos que no ano de 1758 tinha o Monte trinta fogos, setenta e duas pessoas adultas e quinze menores.
A aldeia cresceu de Norte para Sul, o extremo Norte da povoação onde foram edificadas as primeiras casas é conhecido por “Traseiras”. Nas Traseiras, ruas e casas apresentam uma arquitectura diferente das edificadas para Sul do largo do Terreiro. Foi aqui que nasceu o Monte a poucos quilómetros do Tejo e onde fomos encontrar a Fonte do Monte. Nasceu e cresceu e eis que chegamos ao século XX.
Há noventa anos, um homem já exausto entra em Portugal, é Montalvão a primeira povoação que avista e depois Salavessa, de seu nome António Augusto de Jesus, desertor militar, dizia-se filho de Paiva Couceiro. Aqui permaneceu acarinhado pelos salavessenses, ensinou aos miúdos as primeiras letras preparando-os para o exame da terceira classe, foi o primeiro “professor” não diplomado. Todavia seria preso e transferido para África.
Na hora da despedida as crianças acompanharam o seu mestre até ao Ribeiro de Fiverlo para um último adeus. Regressou a Salavessa depois de cumprir a sua pena e aqui continuou a ensinar até que em 1922 se constrói a Escola Primária e surgem os primeiros professores formados.
Emigração e agricultura como “fontes” de sobrevivência
A aldeia esteve sempre a crescer até há quarenta ou cinquenta anos atrás.
Acompanhei de perto os trabalhos dos meus avós, que não eram diferentes das actividades de outras pessoas. Foi à custa de muito sofrimento que dos rudes campos nasceu a espiga, nas ceifas se conheceu o inferno. Nas eiras se separou o trigo do joio, para os moinhos se acartou o trigo, nos fornos se produziu o pão, com este se matou a fome.
Estou de regresso ao século XXI. Observo os instrumentos que repousam nos palheiros, estão agora cheios de pó e teias de aranha, o seu trabalho chegou ao fim, fazem-me lembrar objectos de tortura da Idade Média, coisas do tempo da escravatura. Cada objecto é como um filme, reporta o meu pensamento a um episódio ou cena. Talvez há vinte anos lembro-me de um amigo me dizer, a propósito de uma seara de trigo que os meus avós tinham, dizia-me então esse amigo, que até se dizia entendido, que para uma área tão grande não era humanamente possível efectuar a ceifa à mão por se tratar apenas de duas pessoas. O trabalho foi concluído. Curvo-me perante o seu sofrimento.
Recordo alguma fervilhar de vida, nos anos setenta, apesar de ser miúdo há imagens que não se esquecem. Lembro-me de vir de burro da tapada do Pêro Galego para Salavessa, nas veredas destas terras, este animal era um óptimo meio de transporte, ainda são alguns quilómetros e fazia-me confusão o porquê de ir tão longe fazer a horta.
Lembro a matança do porco onde toda a família ajudava, o pior era pendurar o animal no chambaril e proceder à sua pesagem, dada a avançada idade da maior parte dos homens. O resto do serviço era com as senhoras, lavar as tripas nos cursos de água, migar a carne e fazer os enchidos.
No dia seguinte eu ia fazer os “mandados”. Com uma cesta na mão deslocava-me à casa das pessoas que tinham ajudado na matança para entregar carne, em troca recebia uma moeda.
Recordo o riso das pessoas, nomeadamente entre o meu avô e outros familiares e amigos, a boa disposição estava quase sempre presente. Recordo o meu tio Joaquim António a tocar concertina à entrada do arraial da festa de S. jacinto, estava feliz porque casara a filha nesse dia. Todos os que passavam, ali permaneciam um pouco para encher a alma de felicidade, não me recordo da melodia, só sei que estava feliz e que é muito bom ser criança. De coração puro, tudo o que possa dizer sobre a “grandeza” deste homem é pouco, tenho dificuldade em transpor no papel todos os sentimentos.
Não me lembro mas imagino o salto aventureiro para França, um salto para o desconhecido, com todas as dificuldades que isso implicou. Não posso imaginar o sofrimento das famílias à espera das notícias que não apreciam, as esposas são agora o homem, nos campos e em casa.
Em Chenove, França, talvez para ocupar o tempo ou para matar saudades, o meu avô puxa por um caderno e escreve os primeiros versos. As primeiras palavras são para Salavessa, para o rio Tejo e para as “Incertezas da Vida”. Estamos em Julho de 1968, Salazar caíra da cadeira há coisa de semanas, estão para breve mudanças em Portugal.
Estou de regresso a Salavessa. Observo o presente. Qual será o futuro? As ruas estão desertas, tudo parece ter terminado, as portas estão cerradas. Lembro as portas abertas. Lembro vidas que já são terra. Lembro os sorrisos enrugados. Os campos estão desertos e de luto carregado. Indiferentes a todas as transformações as águas do Tejo correm de mansinho. É o silêncio absoluto. As portas estão cerradas.
Hoje já não nos deslocamos de burro mas em potentes automóveis. Não é fino aprender a tocar concertina e a matança do porco tornou-se ilegal.
Nós, no século XXI, não sei se evoluímos ou regredimos. Não sei se somos mais felizes, se mais ricos, se mais pobres.
Luís Mário Correia Bento in "Alto Alentejo" - 8/1/2014