26.6.25

25 JUN. 1975 - Do Rovuma ao Maputo, Moçambique Independente


UM CÉU SEM ANJOS DE ÁFRICA

À Guilhermina e ao Egídio

 

Detinha

a menina de cinco anos

tinha pai e tinha mãe

e tinha duas irmãs, Senhor!

 

Detinha

a menina de cinco anos

tinha uma filha de retalhos de chita

e fazia duas covinhas de ternura na face

quando sorria, Senhor!

 

Detinha

a menina de cinco anos

tinha uma filha de ágeis pernas de pano

olhos brilhantes de cabeças de alfinete

e fulvos cabelos de maçarocas maduras

que a febre derradeira da Detinha

não contaminou.

 

Olhos cerrados suavemente

boneca Detinha dos seus pais

adormeceu de tétano para sempre

mãozinhas postas sobre o peito

um vestido de renda branca

mais um anjo nosso partiu

no adeus silencioso de boneca

verdadeira num fúnebre berço branco

nossa Detinha tão pura na Munhuana

que até ainda não sabia que era mulata.

 

Oh! África!

Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor

e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços

e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal

geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado

e dormiram sem pesadelos na vasta solidão

de um coval mínimo de criança infelizmente

sem as duas covinhas na face

quando sorriam, Senhor?

 

E ainda não temos um talhão de céu azul para todos

e novamente uma África para amar à nossa imagem

num anjo verdadeiro anjo também cor da nossa pele

e da mesma carne mártir de feitiços estranhos

e o nosso sangue vermelho vermelho quente

como o sangue vermelho de toda a gente.

 

Para o tal céu onde existe o tal Deus que não sabe

línguas de África línguas de África línguas de África

e só sorriem anjos brancos de asas impossíveis de arminho

precisamente onde esse arminho só pode ser algodão de sofrimento

ainda não há lugar para meninas puras da cor

das meninas filhas e netas de mães e avós pretas

da nossa Detinha que partiu ainda boneca

e tão pura que ainda não sabia que era mulata.

 

E brinquedos de trapos não se misturam na Munhuana

com bonecas loiras de sapatos e tudo

porque os pais arianos rezando nas catedrais

não deixam, Senhor!

 

·         José Craveirinha (1960)

·         Foto retirada de https://iriscordemelad.blogspot.com/)