6.9.22

CRÓNICAS DA TABANCA: "Parte pêso!"

Recordo-me daquele instante como se fosse hoje. No entanto, já transcorreram mais de cinquenta anos.
Era uma tarde de Junho de 1972. Um calor tórrido, abrasador, sufocante, infiltrava-se nas nossas grossas fardas, queimando-nos a pele. O avião fazia-se à pista. Era o fim da nossa primeira viagem de avião e para trás ficaram quantas ilusões desfeitas...
Depois do silêncio de chumbo em que viajámos, aqui e ali interrompido por uma piada, ou uma anedota para enganar a tristeza que sentíamos, surgia, agora, uma nova animação: a terra vermelha, em brasa, de fulas e mandingas, balantas e manjacos, ali estava à nossa frente.
Que mundo estranho! Que terra bárbara!... Quedei-me perplexo, olhando em todas as direcções, tentando alcançar alguma coisa de familiar que servisse de lenitivo para aquea estranha sensação.
E o calor sempre a apertar-nos, suor a correr em bica, a colar-se a nós, a sufocar-nos.
Passámos as várias dependências do aeroporto de Bissalanca, olhos arregalados, suspeitos, medrosos...
Só então reparei naquele grupo de crianças, sem roupa, de barriga disforme e umbigo sobressaído, que nos fitava através da rede e do arame farpado.
Crianças negras, retratos de fome, que imploravam, através das mãos estendidas, dinheiro, sabe-se lá para "matarem" quantos sonhos, nas suas cabeças semi-adormecidos.
Tinham a dor, a fome, bem patentes nos seus corpinhos precocemente deformados.
Não sei quantos pensamentos me perpassaram naquele momento. Um misto de ternura, de incredulidade, de repulsa até...
Ao fim e ao cabo eu era um colonizador fardado, para ali destacado para combater os "turras" e manter bem viva a chama do Império Português e da "civilização ocidental". Quem sabe se ali não estariam filhos, sobrinhos, netos e parentes de "turras"...
 - Siô, parte peso! (1) Dá patacão!
Havia qualquer coisa de misterioso, de atraente, naquela criança. O seu olhar, os seus gestos de súplica, contrastavam com o sorriso aberto, alegre, quase orgulhoso.
Abandonámos o aeroporto a caminho do quartel, nossa casa forçada durante dois anos. Aquele primeiro contacto com a terra de Cabral, aqueles gestos, a serenidade daquela criança, marcaram-me.
Durante longos meses, quase infindáveis, aprendi a conhecer as crianças, as gentes da Guiné.
Ouvi histórias, proibidas, sobre Madina do Boé, o massacre de Pidjiguiti, os confrontos no Leste, sobre o derrubar de mitos.
Aprendi a conhecer-me, a questionar-me, a saber o valor de muitas palavras. Tugas, psícola, turras, pretos e negros, palavras que parecem iguais e encerram significados tão diferentes.
Descobri quem eram os "turras", naquele chão de rios e tabancas, de mandioca e bolanhas, ocupado.
Recebi lições de humanismo que a "civilização ocidental" não pode dar.
Hoje, sei que aquelas mãos estendidas, suplicantes, junto ao arame farpado, mais do que pesos, pediam paz.
Hoje, àquelas crianças de Bissalanca, agora adultos e com família, apenas quero dizer-lhes: Djarama! (2)
Clemente Petit
NOTAS
(1) Parte Pêso - o mesmo que divide, reparte, dá.
(2) Obrigado
a) - Este texto com o nome de "Crónicas da Tabanca" foi publicado pela primeira vez no semanário "Fonte Nova" em 1 Junho 1989. . 
b) A sua republicação surge na sequência do recente pedido de desculpas do 1º ministro António Costa, às vítimas do massacre de Wiriyamu (Moçambique), em Dezembro de 1972. Um gesto que dignifica Portugal e quem o praticou, aliás, repetindo o pedido de desculpas feito in loco, há anos, por alguns dos soldados portugueses que nele participaram. Esta e outras acções de repressão, como o massacre de Pidjiguiti, na Guiné, apesar das tentativas de silenciamento, abalaram o sistema colonial português e criaram condições para o recrudescimento das lutas de libertação nacional dos povos africanos e para o derrube do regime fascista em 25 de Abril de 1974.