Hoje vou falar-vos duma crença que só necessariamente o medo
e a ignorância impõem cegamente.
- Porquê o medo de dar sangue?
Foi por isso que me surgiu a ideia de escrever com serenidade
esta grande verdade que sei frutificará acima de todas as suspeitas.
Têm surgido ultimamente no nosso Hospital Sub-Regional
imensos casos em que as intervenções cirúrgicas são feitas com dificuldades
pela aquisição de sangue, inclusive da própria família dos doentes. E isto
unicamente pelo que acima refiro: O MEDO DE DAR SANGUE.
A sombra do medo e do mistério tem que se dissipar, porque
as possibilidades de cada um de nós são devidamente controladas pelo médico, e
por isso todos devíamos saber o grupo sanguíneo a que pertencemos, já por
necessidade própria, como além do mais para podermos socorrer os que possam
precisar.
Não é de consciência nem de amor que se procure nos
estranhos o remédio para suavizar a dor dos nossos, quando muitas vezes em nós
próprios há reservas para que não se sacrifiquem os outros.
Foi há dias, um desse muitos dias que têm surgido, primaveris
para uns, mas cheios de neblinas e muito escuros para outros, que vi
aproximar-se de mim um pobre homem como que procurando adivinhar uma resposta.
- Senhor, precisava de sangue e vinha pedir-vos se fazíeis o
favor de dar-mo...
Perguntei quando era necessário e a que horas.
- Amanhã, às duas da tarde.
Lá fui como prometi. Assisti à transfusão e fui conversando
com o doente.
Contou-me toda a sua história. O médico havia-lhe dito que,
se encontrasse quem lhe fornecesse sangue, ele poderia viver...
Para isso andou uma sua irmã procurando quem o fizesse, sem
que fosse atendida.
Mas a vida!... O que é a vida!...
Ele queria viver e por isso pediu alta ao Hospital para que,
pelos seus próprios meios, viesse pedir sangue, pois não tinha recurso para
poder comprá-lo. E depois?... Depois de ter pedido a toda a sua família que é
das numerosas da nossa Nisa, não encontrara senão recusas e desculpas.
Uns tinham medo, outros haviam dado há pouco tempo (o que
nunca fizeram) e outros ainda receavam a fraqueza dos pulmões... Enfim, uma
falta de compreensão e humanidade dos nossos.
Para exemplo vou contar-lhes casos verídicos, passados já
entre nós.
Certo dia o médico dissera a um indivíduo que desejava ver qual
era o grupo sanguíneo a que pertencia, pois sua mulher precisava de sangue. Recusou
com a seguinte declaração: Sr. Doutor, não dou, porque para ficarmos os dois
doentes, então que fique só ela!...
Uma outra mulherzinha das proximidades fora internada no nosso
Hospital com doença de certa gravidade. O médico pediu à referida doente que
chamasse o seu marido e os irmãos a fim de lhe darem sangue, ao que a doente,
apesar de tudo, respondeu:
- Não vale a pena Sr. Doutor, pois eles são todos muito
fraquinhos!...
E foi preciso uma criada do Hospital andar de porta em porta
a procurar dessa gente de boa vontade que o fizesse.
E depois de todos estes exemplos, se todos pensássemos
naquilo que amanhã nos pode atingir, não haveria mais perturbações a
obscurecerem a razão. Ser generoso é sintoma de força e inteligência. E só
nisto não crê aquele que não confia naquilo que defende, como na verdade
religiosa só pode ser proclamado aquilo que fazemos e nunca aquilo que dizemos.
E ao defendermos estas verdades determinamos soluções reais
e assim não apoiamos nem comentamos uma causa por ilusões ou aspirações, mas
sim para que ela frutifique e se fortaleça.
Nisa, Janeiro de 1965
Ilídio Nogueira Leitão in “Correio de Nisa”nº 4 – 2ª série –
23/1/1965
Fotos: Dadores/as de Sangue - 2006