O Rancho das Cantarinhas
Onde vai faz sensação
Cumpre bem o seu dever
E tudo gosta de o ver
Rancho do meu coração.
Manuel Carita Pestana – Maio 1966
O seu principal obreiro e dinamizador foi Rodrigues Correia,
um nortenho, artista amador de teatro que no início dos anos 60 tinha chegado a
Nisa com a família, no roteiro de uma itinerância pelo país.
As Maneirinhas
"Nas marchas de Santo António, véspera da Feira das
Cerejas, o ti Dionísio Calhabré e a senhora Teodolinda começaram as cantar as
marchas", recorda Maria Dinis Pereira, que anos mais tarde viria a ser
ensaiadora do rancho.
"Ela cantava e o ti Dionísio tocava o banjo. Deu-se em
juntar muita gente. O senhor Rodrigues Correia, que estava em Nisa há pouco
tempo e morava na Rua Direita, ouvi-os e juntou os gaiatos que por ali havia e
começou a marchar com eles. O Rancho, a bem dizer, começou com uma marcha.
Divulgou-se esta iniciativa e começaram a vir crianças de vários sítios da
vila. Aí ele pensou em fazer uma marcha. Com a "Nisa Velhinha" e
"A Porta da Vila", que são marchas, é assim que começa o
Rancho."
Dinis Pereira ainda se lembra de, na véspera da Feira, à
noite, os gaiatos andarem a marchar pelo recinto da feira e de o ti Fantocha,
que tinha um botequim, começar a dar massa frita e pirolitos às crianças.
Por ocasião da inauguração da Casa do Povo de Nisa,
Rodrigues Correia lembra-se de se apresentar com os miúdos trajados a rigor, no
acto solene, presidido pelo ministro Gonçalves Proença. No início, o Rancho
chamava-se Rancho Infantil de Nossa Senhora da Graça e manteve este nome quando
apareceu o das Cantarinhas. Foi uma grande apresentação e a partir daqui as bases
da criação do Rancho adulto estavam lançadas.
"No início não havia músicas, nem letras e muito menos
recolha de modas tradicionais, explica Maria Dinis e foi o vizinho, senhor Luís
Félix que se encarregou de fazer as músicas e ao Dr. José Gomes Correia ficou a
incumbência das letras. Foi assim que nasceram "As maneirinhas",
Passinhos da Fonte da Pipa", "Bailarico da Senhora da Graça" ,
"As brincadeiras da Devesa" e "A moda dos estralos"
(popular /antiga)".
Nascia assim, na Rua Direita, numa rua de músicos e quase
por um feliz acaso, o embrião de um grupo popular e etnográfico que iria
divulgar e projectar o nome de Nisa e das suas cantarinhas pedradas pelo país
inteiro, exibindo-se com arte e esplendor nos mais conceituados palcos de
festas e festivais para que era convidado.
Em poucos meses e mercê da capacidade dinâmica e
organizativa de Rodrigues Correia e de vários músicos que emprestaram
generosamente a sua disponibilidade e o seu talento a esta causa bairrista, os
Ranchos de Nisa (Nossa Senhora da Graça (infantil) e Típico das Cantarinhas
(adulto) granjearam tal fama que se tornou difícil responder a tantas
solicitações.
Marca indelével de
graça e beleza
Foi tal a projecção do Rancho, num tão curto espaço de tempo,
que Abel Monteiro, director do “Correio de Nisa” não resistiu a dedicar-lhe um
editorial na primeira edição de 1965 (9 de Janeiro) com o título “Progresso”,
do qual respigámos algumas nótulas:
“Nisa pode já hoje orgulhar-se de possuir um rancho típico,
agrupamento constituído por gente moça da nossa Terra, que tem agido em várias
localidades e é, sem dúvida, uma verdadeira embaixada da Corte das Areias, a
difundir arte, costumes e tradições duma vila tipicamente alentejana, onde não
faltam heranças estéticas do passado que muito a nobilitam.
Gente de acentuada paixão pela música e pelas práticas
coreográficas, sabe com desusada mestria, manter um ritmo perfeito entre a
epopeia rude do trabalho campestre e o expandir da sua sensibilidade bem
portuguesa; entre o arado que rasga a terra e a melodia dos seus cantares que
embala corações.
Este “Rancho Típico das Cantarinhas de Nisa” leva consigo a
impetuosidade de alma às almas de todos os nisenses que vivem longe da sua
Terra-Mãe; e já tem feito brotar lágrimas de amor e de saudade. Por toda a
parte, onde o Rancho tem exibido as suas danças tradicionais, deixa marca
indelével de graça e de beleza.
E, ainda considerado noutro sentido, é uma forma eficiente
de cultura popular e de educação cívica.”
Os ecos dos êxitos dos Ranchos de Nisa chegavam a todo o
lado e o entusiasmo mantinha-se até nos ensaios, a que assistia muita gente
interessada, numa terra que em termos culturais pouco mais tinha que oferecer.
O Rancho Típico das Cantarinhas, as suas actuações e o impacto que gerava à sua
volta, funcionou também como uma “pedrada no charco” que agitou o marasmo e a
indiferença que imperava na vila.
A direcção e organização de Rodrigues Correia, secundada
pelo apoio de José Gomes Correia e de Luís do Rosário Matias (Félix) e de
músicos como Adolfo Bugalho, no saxofone e José Augusto Cebola, no flautim,
garantiram, numa primeira fase, a existência de um grupo cultural e etnográfico
com uma qualidade de que todos se orgulhavam, num tempo em que havia
dificuldades e falta de apoios, mas em que sobrava a carolice e um espírito
bairrista assinalável. Era este “espírito de grupo” ou como alguém lhe chamou,
a “alma nisense”, que conseguia pequenos “milagres”, fosse no arranjo ou
aquisição de trajes, na cedência e preparação do espaço de ensaio ou ainda na
resolução de outros problemas.
Maria Dinis não resiste a contar um episódio que esteve na
origem da criação de mais uma moda.
" O senhor
Rodrigues Correia viu que as moças escorregavam no sobrado e lembrou-se de
pedir aos seus colaboradores (Luís Félix e Gomes Correia) para lhe fazerem uma
música em que dançassem descalços. É assim que nasce o estribilho, muito
conhecido de: "Ai, ai eu de Nisa sou / Sapatos não tenho, ao balho (baile)
não vou".
Outra curiosidade, residia na florinha que ornamentava os
sapatos das raparigas.
"Os sapatos
tinham uns pompons, umas bolinhas de lã, porque cá em Nisa dizia-se que quando
as cachopas calçavam umas galochas, que era do mais barato que havia, as mães
punham-lhe essa bolinha para dar mais graça e importância aos sapatos. No
Rancho, usavam-se as bolinhas vermelhas porque destacava no sapato preto e
combinava com a cinta do traje masculino."
Brilhantismo no
Pavilhão dos Desportos de Lisboa
Os primeiros anos de existência do Rancho Típico das
Cantarinhas de Nisa foram anos de grandes êxitos e de intensa actividade. A brilhante
actuação no Pavilhão dos Desportos de Lisboa em Julho de 1967 no Festival
Nacional de Folclore constituiu, talvez, o ponto mais alto na primeira fase da
sua existência. Outras actuações como a da Casa do Alentejo, em Março de 1966 e
nas festas populares de S. Pedro (Montijo) ou na Feira de Santiago, em Setúbal,
entre muitas outras pelo país, mostraram a popularidade do Rancho e a qualidade
dos seus dançarinos e músicos, bem como o trabalho desenvolvido, em autêntico
amadorismo e por amor à camisola, a de Nisa.
Os ranchos folclóricos como todas as associações, têm os
seus ciclos de vida, mais intensa ou de menor fulgor, conforme os tempos e as
circunstâncias. O serviço militar, que mobilizou milhares de jovens ou a
procura de melhores condições de vida fora da terra e do país, obrigou o Rancho
das Cantarinhas a uma paragem forçada no final dos anos 60. Rodrigues Correia,
rumou com a família a outras paragens. Deixou a semente e o fruto, e a vontade
de seguir em frente ressurgiu com outros actores, dirigentes, músicos e
dançarinos. O nome do Rancho manteve-se, os trajes e as modas também.
Numa terra de músicos, faltavam os instrumentistas, mas
acabaram por aparecer, agora com novos instrumentos. As concertinas substituíram
o saxofone e o flautim dos primeiros anos do Rancho.
Os tempos são outros. Há ainda carolice, vontade, apoios das
autarquias, mas os jovens passaram a ter mil e uma solicitações e “ofertas” de
ocupação dos tempos livres. Os ranchos folclóricos como outros grupos, começam
a sentir dificuldades no recrutamento de dançarinos ou bailadores.
Nova vida para o
Rancho das Cantarinhas
Joaquim Martins Rebelo, actual presidente da direcção do
Rancho fala-nos do passado e antevê o futuro deste agrupamento folclórico.
“Estou ligado ao Rancho desde 1978 tendo integrado como
tesoureiro a direcção presidida por João Videira Belo e José Luís Palheta
Mendes, secretário.
Na altura o Rancho estava parado há alguns anos e resolvemos
reactivá-lo, dando resposta a muitos pedidos que foram feitos.
Houve dificuldades mas conseguimos pôr o Rancho de pé,
mantendo no essencial o trabalho feito anteriormente.
Em 1986, como presidente da direcção, que integrava António
Manuel Bizarro e João Miguéns convidámos a senhora D. Maria Dinis Pereira para
ensaiadora e foi por sugestão dela que iniciámos as recolhas etnográficas por
todo o concelho de Nisa, com vista a inscrevermo-nos na Federação do Folclore
Português, formalidade sem a qual não podíamos participar nem organizar festivais
de folclore. Foi um trabalho cansativo mas bastante profícuo que fica para
memória futura e com o qual conseguimos o nosso objectivo em 1990. A filiação
obrigou-nos, entre outras coisas, a mudarmos, radicalmente, os trajes. O traje
antigo, uniforme, composto de saia encarnada e xaile branco bordado, deu origem
a um outro, em que sobressai a variedade."
Maria Dinis Pereira lança-se na tarefa de reconstruir o
Rancho, como ensaiadora. As marchas e as modas mais antigas, de autores
nisenses, vão coexistir com outras que irão aparecer fruto da recolha feita em
todo o concelho.
A dinâmica e o entusiasmo levam a direcção a pensar na reactivação
de um grupo de antigas tradições e representação original: os Corcovados.
São feitas algumas apresentações na vila de Nisa que
suscitam curiosidade e agrado por parte da população. Mas os recursos humanos
são escassos e a ideia é abandonada.
Medalha de Mérito
Municipal
Actualmente, o Rancho Típico das Cantarinhas de Nisa é
constituído por 12 pares (bailadores) um grupo de instrumentistas e um grupo de
divulgação etnográfica, que integra uma ceifeira, lavadeira, mondadeira,
azeitoneiro e manajeiro. A ensaiadora é D. Joaquina Bizarro Rebelo, esposa do
presidente da direcção.
Fundado em 1964, o Rancho Típico das Cantarinhas de Nisa foi
agraciado pelo Município de Nisa com a Medalha de Mérito Municipal como
reconhecimento pelo trabalho desenvolvido na promoção cultural e etnográfica do
concelho e região, ao longo de meio século de existência.
“A medalha de Mérito Municipal é uma distinção que muito nos
honra e orgulha, dando-nos mais força para continuar”, reconhece Joaquim
Rebelo.
“Temos conseguido com empenho e dedicação, manter o grupo em
funcionamento, pesem embora as dificuldades sentidas, pois as nossas actuações
são gratuitas e é através de intercâmbios com outros grupos que mantemos a
actividade. As despesas vão desde o pagamento aos músicos, calçado, trajes e
sala para ensaios. Temos um contrato de comodato com a Câmara que nos cedeu
instalações no antigo parque de máquinas e aguardamos que haja algumas obras de
beneficiação para podermos aí ensaiar.”
Questionado sobre os apoios que o Rancho recebe, Joaquim
Rebelo destaca o que é concedido pela Câmara em transportes e alguns subsídios
para pagamentos dos instrumentistas e material, bem como o das Juntas de
Freguesia da sede do concelho e alguns comerciantes.
Estamos a comemorar 50 anos de existência e quero aqui
publicamente agradecer a todos (homens e mulheres) que durante estas décadas
fizeram parte do Rancho Típico das Cantarinhas de Nisa, muitas vezes com grande
sacrifício pessoal e familiar.
Agradeço também a todas as entidades que ao longo destes 50
anos ajudaram a manter e a dinamizar este projecto cultural, que procurou desde
a primeira hora, engrandecer e levantar mais alto o nome de Nisa, das suas
gentes e tradições.”
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 25/6/2014