12.7.11

CRÓNICAS DA TABANCA: Lembras-te do Zé da Silva?

Foi com esta pergunta que um amigo me abordou, há dias.
O Zé da Silva? Claro que me lembrava do Zé da Silva.
A memória recuou, dez, vinte, trinta anos e lá estávamos nós em Montalvão, na Salavessa, em Nisa, em todas as terras do concelho e outras do distrito, nos tempos de utopia e criação revolucionária, que se seguiram ao 25 de Abril.
O José da Silva Costa no auge da irreverência dos seus 18 anos, cabeleira loura, espessa e longa, “à beatle”, queria, tal como todos nós, “mudar o mundo”, fazer a revolução socialista, expressa em palavras de ordem como “ a terra a quem a trabalha” e tantas outras.
A dureza do trabalho nos campos e a magreza dos salários do trabalhador rural, a emigração para França, a guerra colonial, era a realidade de uma terra, a sua, onde se ouviam histórias intermináveis, sobre a odisseia do contrabando, os relatos dramáticos da guerra civil espanhola, com o ribombar dos canhões, a ouvirem-se, ali bem perto, do outro lado do Sever, a perseguição e o exílio dos republicanos, dos “rojos”, muitos deles acolhidos nas povoações da raia.
Não foi, por isso, difícil, antes, natural, ao Zé da Silva, fazer a sua opção política, ainda bastante jovem e no tempo de todas as ideias e inquietações.
Um tractor, um coreto, escada ou pequena elevação onde pudesse sobressair a “voz dos oradores” tudo servia para, nesses tempos de febril agitação, falar às pessoas e tentar passar-lhes a mensagem política e incutir-lhes a ideia de participação na “coisa pública”.
Sem estudos por aí além, mas já imbuído do gosto e do prazer pela leitura, o Zé da Silva, surpreendia-nos, amiúde, pelas tiradas filosóficas e pelo arrojo da argumentação, ainda que, o seu espírito militante, fosse orientado noutras direcções.
De um momento para outro, deixei de ver o Zé da Silva. Como muitos jovens deste concelho e país, não esperou para ver o futuro acontecer. Partiu, foi à procura dele. Soube que estivera nos EUA, que de quando em vez vinha a Montalvão, mas há muitos, muitos anos, que o não via.
Até que… Lembraste do Zé da Silva? Claro que lembrava. Ali estava ele, trinta anos depois, à minha frente, primeiro, na plateia dos “opositores” (o único, por sinal) ao titular da cadeira do concurso da RTP “Um contra todos”.
Era ele, sem dúvida. O mesmo ar sereno, as ideias amadurecidas, a dialéctica sempre actuante e as respostas a surgirem, certeiras e precisas.
Era fácil adivinhar – conhecendo o Zé da Silva -, onde aquilo iria terminar. Vinte e seis perguntas, sem um trunfo ou uma falha, sequer. Algumas, de domínios do saber que, especialistas, provavelmente, não acertariam. Mas, o Zé da Silva, serena e desconcertantemente, assim como que a dizer que não estava ali, ia falando do seu Alentejo, das suas vivências e das suas raízes, perante a admiração, quase embevecida, do José Carlos Malato.
Foi, pois, sem surpresa, que se sentou na cadeira de concorrente e de onde, com a mesma calma e descontracção, “viajou” até à memória dos seus pais e avós, às histórias que ouvira sobre a “Raia dos Medos”, e daí, com desassombro, elogiou os trabalhos para a televisão de Moita Flores, numa crítica, directa e implícita à própria RTP.
O Zé da Silva venceu o concurso. Não me perguntem, quantos mil euros, levou para casa.
Por mim, fiquei feliz, por revisitá-lo, mesmo através da televisão. Não tanto pelo dinheiro que ganhou, mas, apenas, por saber que, trinta anos depois, aquele “bichinho” que se introduziu em nós e chamado utopia, continua bem vivo.
E que, ali, perante uma imensa plateia, que é o “país televisivo”, o Zé da Silva mais não fez do que ser igual a si próprio: um cidadão do mundo e alentejano da raia, do Sever, já sem fantasmas nem medos e, hoje, um traço de união.
João da Cruz - Jornal de Nisa nº 222 - Jan.2007