Malditos los que viven de la venganza
mientras mueren los pueblos por la esperanza.
Silencio de mi tierra,
qué amargo suenas,
las piedras del camino
hoy sangre llevan, hoy sangre llevan.
- Chicho Sánchez Ferlosio
É difícil falar do Adriano. Faz tantos anos que partiu e ainda ressoa o eco da notícia, impiedoso e brutal, como uma violenta pancada na cabeça. As memórias põem-se aos saltos, fica um nó na garganta, um amargo na boca, uma angústia a roer as entranhas. Uma mágoa cá dentro…
O Adriano reinventou a arte dos trovadores, foi um dos riachos que formaram o rio, uma das raízes que confluíram no tronco da árvore. O seu nome está ligado a algumas das mais belas canções que se fizeram em Portugal. Era ele mesmo, autónomo e único, sem precisar de condescendentes comparações com outros criadores ou companheiros. Na altura em que precocemente nos deixou, estaria a compor coisas muito belas, deixadas adivinhar pelos seus últimos trabalhos, irreverentes e inovadores.
O Adriano era generoso, era um gajo porreiro. Ao Adriano ficava-se a dever o cachet porque o Adriano não chateava ninguém. O Adriano tinha sempre na boca aquele sorriso tranquilo de boa pessoa e umas mãos enormes feitas para acariciar as pessoas e as guitarras. O Adriano era um homem de honra e de palavra.
O Adriano era um bom amigo: um copo de vinho, o pão compartilhado, os camaradas à volta de uma velha mesa de carvalho, uma conversa serena sobre não importa o quê e isso era o suficiente para o fazer feliz. Só não sabe como é bom o gosto da camaradagem quem nunca teve a oportunidade de o provar. Com o Adriano, esses momentos eram um privilégio de magia. Fica a suspeita incómoda de que não se lhe deu o carinho que merecia.
O Adriano era corajoso. Enfrentou a polícia política, a censura, o exame prévio, cantou Cília quando isso por si só o podia levar à cadeia. Depois de Abril esteve com as fábricas em greve, com os campos do Alentejo, em todos os locais onde se afirmou a dignidade de um povo em luta pelos seus direitos e desejos. O Adriano estava sempre onde era preciso, a correr riscos com a sua bagagem de canções.
O Adriano era terno. Suportou com a altivez do silêncio a ignomínia dos poderes instituídos da chamada cultura nacional, que o quiseram calar e o pretenderam aprisionar em redutos de esquecimento. Ou que o tentaram recuperar, já depois de ele nos ter deixado, com homenagens uivantes e necrófagas.
O Adriano era livre. Aturou as traições mesquinhas de alguns pretensos correlegionários, ainda há pouco saídos das águas turvas do nacional-cançonetismo, que tentaram assim esconder a sua própria mediocridade usando a desculpa das estratégias comerciais e das tácticas políticas de profundo mau gosto.
O Adriano era grande, de corpo e de alma. Disse sobre ele o Luís Cília que “Há pessoas que, independentemente de boicotes e de más vontades, conseguem chegar a um ponto onde, para os nomear, já não é necessário pronunciar todo o nome.”
A Morte levou com ela a lira. A Morte gosta de canções, não fosse a nossa bela e fiel companheira. Mas a Morte não sabia tocar lira. Então, Adriano deu a mão à Morte e foi ensiná-la a tocar a lira para a margem esquerda da nossa memória. No paraíso dos músicos passou a falar-se de luta de classes, de reforma agrária, de proletariado, de coisas tão reais quanto improváveis, como de uma cooperativa agrícola em Trás-os-Montes perdida. Este parte, aquele parte… deve haver por lá uma grande festa… a Lourdes Iriondo, o Marc Robine, o Zeca, o Imanol… o Chicho, de quem Adriano cantou uma bela estrofe, numa singela homenagem aos últimos assassinados do franquismo, talvez sem saber quem a tinha escrito… e está bem assim, que as estrofes, ou são do povo, ou não são.
Adriano partiu e faz-nos uma falta dos diabos. Soldados cercados num qualquer porto de abrigo, soam-nos ao longe os versos galegos de Rosalia vertidos em português, mas agora cantados em bretão: tudo línguas de emigrantes, ocidentes de malas às costas e lágrimas a turvar os olhos.
Galiza, onde quer que sejas, tem cuidado, não fiques tu sem homens que te cantem as mágoas e as esperanças.
Paulo Barrosa / Companhia da Bruma, a 16 de Outubro de 2014, 32 anos após o Adriano ter ido viajar com destino a outras paisagens.