“Mãos sujas do trabalho
Não tendes que ter vergonha
Estais sujas do trabalho
Mas limpas de peçonha”
Nisa foi sempre uma terra de artistas e de gente com grande paixão pelo teatro. No século XIX e à falta de melhor, instalavam-se palcos em espaços públicos para as representações de actores locais. Nos anos 40, 50 e 60 do século passado, muitas foram as peças de teatro levadas à cena, por amadores nisenses. A propósito do Dia Mundial do Teatro (27 de Março) trazemos à memória um espectáculo realizado no dia 11 de Março de 1946 e as emoções que o mesmo provocou à principal intérprete da peça “Romeu e Julieta”, Ana Maria Paulo.
“ Foi uma coisa nunca vista em Nisa, o Cine Teatro cheio, à cunha, as pessoas, ricos e pobres, na expectativa para verem o que nós fazíamos”.
A estreia foi o culminar de um longo trabalho, que incluiu seis meses de ensaios, à noite, numa sala da JAC (Juventude Agrária Católica), depois de um longo e duro dia de trabalho. A senhora Ana Maria, 81 anos, 22 dos quais a trabalhar em França, recorda como tudo se passou.
“O principal impulsionador do teatro foi o meu pai, Joaquim Paulo. Trabalhava na Horta do Parreirão e à noite recolhia-se, sem dizer nada a ninguém. Andou um ano a ler o romance “Romeu e Julieta” e a estudar a forma de o levar ao palco. O meu pai não andou à escola, aprendeu a ler e a escrever na tropa, mas tinha também o “bichinho” do teatro e conseguiu arranjar um bom grupo para a representação. As mulheres e parte dos homens trabalhavam no campo e foi preciso uma grande força de vontade para levarmos este desafio por diante. O meu pai era muito disciplinado e não admitia faltas de respeito. Em 1946 não era nada fácil juntar um grupo de mulheres e pô-las em cima de um palco a representar, mas o meu pai conseguiu.” Actores, ensaiador e técnicos de "Romeu e Julieta" - 11 Março de 1946 em Nisa
Ana Paulo tinha 17 anos e ainda recorda com um frémito de emoção e um brilho nos olhos, o seu papel de “Julieta”.
“ Representar foi sempre um desejo que tive na ideia e depois da apresentação da peça e a recepção que tivemos da parte do público, ainda mais se cimentou essa vontade. A reacção do público foi fantástica. O Cine Teatro parecia vir abaixo com tantos aplausos. Aplausos que eram um grande prémio para todos e especialmente para o meu pai que tanto trabalhou para aquele momento. Não esqueço o grande esforço que foi feito. As senhoras ricas de Nisa emprestaram os fatos, alguns adereços vieram de Lisboa, por aluguer. Os cenários foram feitos com o espírito de ajuda que existia entre todos nós. A segunda parte dos espectáculos era dedicada a Variedades e eu também cantava, tal como as minhas companheiras, sendo acompanhadas pela música do grupo de jazz “Os Fixes”. Lembro-me de ter cantado “As mãos sujas do trabalho”. Houve duas representações em Nisa, com lotação esgotada. Mais tarde, o meu pai levou à cena “Escravos de Amor” onde desempenhei também o papel principal, “Deolinda”, mas foi a peça “Romeu e Julieta” que me ficou sempre no coração e na memória, de tal maneira que, ainda hoje sei, quase de cor, todos os diálogos.” O exemplo de um trabalhador rural, com exíguas habilitações literárias, não passou despercebido a um dos professores locais que, no semanário “Correio de Nisa” lhe teceu os maiores elogios, bem como ao grupo de amadores, dedicando-lhe mais de meia página do jornal.
“ Num propósito louvável e numa atitude que só nobilita quem a assume, um grupo de amadores dramáticos soube dar aos seus pares e a todos nós, um salutar exemplo de dedicação pela sua terra e de anseio pela sua ascensão e melhoria intelectual, cívica e moral”, assim escrevia o prof. José Francisco Figueiredo que, mais à frente, esclarece:
“ E querem os leitores saber por que motivo todos mais se empenharam e não se pouparam a esforços e canseiras para levarem a bom termo tão difícil e tão desmedido empreendimento? É que o drama Romeu e Julieta fora urdido por um dos seus companheiros de trabalho, o rural Joaquim Paulo, depois de vivamente impressionado com a leitura persistente e interessada do romance do mesmo título. E este fogo interior, esta chama emocional apoderou-se de tal modo do espírito de todos os intérpretes que ninguém poderia dissuadi-los de fazerem a sua estreia de amadores dramáticos numa peça de tantas dificuldades e tão exigente de recursos cénicos.”
Referindo-se ao espectáculo, o autor não poupa nas palavras elogiosas aos actores. “Tanto no drama como no acto de variedades, não podia exigir-se mais de todos os intérpretes. Sem desprimor para os outros, merecem especial menção Ana Maria Paulo, no papel de Julieta; Belmira André, em vários números de canto e Adelino Barra, que teve de substituir, à última hora, o amador a que fora distribuído o papel de Romeu”.
Damos, de novo, a palavra à senhora Ana Maria. “Guardo este jornal há 65 anos e revejo sempre com grande felicidade aqueles momentos inesquecíveis. Conseguimos levar à cena uma peça de teatro, fruto de muito trabalho e de grande ajuda entre todos, tivemos um grande êxito e as receitas foram oferecidas, generosamente, à Santa Casa da Misericórdia de Nisa. Para gente pobre, como eram todos os participantes, demos também um grande exemplo.” Ana Maria Paulo parece reviver o drama e a teia amorosa que opôs os Capuletos e os Montecchios no romance de Shakespeare. Fala do conde Páris, Frei Lourenço, Mercúcio Teobaldo ou Benvólio como se estivesse em cena, deixando escapar uma revelação. “O eco do sucesso de “Romeu e Julieta” foi tal que houve uma companhia de teatro que veio ver de mim, mas o meu pai nunca me disse. Temia que eu abalasse e como eu namorava, acabei por casar e constituir família. Mas foi sempre uma grande mágoa que ficou dentro de mim. Gosto muito de teatro e sempre que a televisão mostra alguma peça ou revista largo tudo para ver.”Ana Maria Paulo não “casou” com o Romeu, nem com o conde Páris. Desposou o “seu” João Cebola e esta história não podia ter um final mais feliz.
Joaquim da Graça Paulo, se fosse vivo, teria completado 100 anos em 15 de Novembro de 2010. Trabalhador rural, a sua escola foi a da enxada e a dos trabalhos na lavoura. Aprendeu a ler e escrever na vida militar. O gosto pela leitura levaram-no a idealizar espectáculos populares de teatro e a levar à cena, dramas e romances que o entusiasmaram. E se bem o pensou, melhor o fez. Reuniu as pessoas, numa época em que era difícil despertar os homens e mulheres para as actividades culturais, mais ainda com ensaios, após um dia de dura labuta no campo. Ainda hoje em Nisa é comum ouvir-se falar nos teatros do ti Páles (Paulo). O seu exemplo frutificou e depois de si outras pessoas tomaram o gosto pelos ensaios e representação teatrais. Romances como “A Morgadinha dos Canaviais” ou o “Visconde de Val Flor” foram levados à cena, em Nisa, sempre com grande e entusiástico apoio popular. O que não é de estranhar, tendo em conta que, desde os anos 30 do século passado, as principais companhias portuguesas de teatro faziam de Nisa um dos seus “poisos” habituais, daqui irradiando a sua acção para concelhos vizinhos.
Mário Mendes in "Fonte Nova" - 29/3/2011