O Senhor Alberto
Gosto de fazer viagens à minha infância.
Redescobrir mundos e lugares, pessoas e tradições que o tempo corroeu. Gosto de me embrenhar no tempo, de reinventar sensações, de correr célere pelos caminhos da minha meninice.
Como era diferente essa época...
Percorríamos ruas e becos, chãos e tapadas, azinhagas, brincávamos aqui e ali, onde calhava, com um prazer sempre renovado.
Havia também as pessoas que entravam na nossa vida e que ajudavam a transformar esse mundo infantil, povoado de sonhos e fantasia.
O Senhor Alberto era uma dessas figuras.
Era um velho carpinteiro que tinha a sua oficina numa das ruelas da vila, ali a dois passos da “Praça”.
Vivia só e mal, como quase todos os artistas daqueles negros tempos, mas nunca lhe ouvi um queixume, uma frase mais azeda ou a despropósito.
De resto, falava pouco, sempre metido consigo próprio, abrindo excepção quando contactava com as crianças que amiúde o visitavam.
O sorriso espontâneo com que nos recebia denotava uma grande afeição e ternura. Via-se, claramente, que gostava de crianças...
De outro modo não permitiria a “invasão” da sua modesta e acanhada oficina nem a desarrumação em que a deixávamos. Tive sempre a sensação que representávamos para ele, sei lá, um mundo, uma parte importante da sua vida, abruptamente cortada.
A sua fabriqueta, na pequena casa da rua da Cadeia, dispunha de um torno e uma bancada, num espaço bastante reduzido.
Ali se encontravam, no mais completo desalinho – que nós ajudávamos a tornar pior – os mais diversos objectos: partes de cadeiras, de móveis, janelas, madeiras por trabalhar, ferramentas. Um “caos”.
O torno era o seu principal instrumento de labor, onde vagarosa mas habilmente ia dando forma aos mais (para nós) complicados trabalhos de carpintaria fina.
Ali passei, com outros companheiros de escola e de brinca, muitas tardes observando aquele velho e paciente artífice, que nos dirigia – qual avô universal – palavras de afecto e carinho.
Tinha uns olhos encovados, o Senhor Alberto. Neles se vislumbrava, bem no fundo, uma grande melancolia.
O sofrimento não deve ter poupado aquele homem bondoso.
O cabelo, já um tanto descomposto e gasto, descia-lhe pela cabeça em pequenas falripas. Um bigodinho branco da cor do cabelo, ajudavam-lho o sorriso com que corajosamente nos enfrentava.
As suas mãos pequenas, de artista, faziam prodígios nos trabalhos que lhe pedíamos:
- Senhor Alberto, faça-me daqui uma bitôrra (1).
E estendíamos-lhe um pedaço de azinho, a que ele sucessivamente ia dando formas até o transformar num objecto de brincadeira.
Doze, quinze tostões, às vezes apenas um sorriso, bastavam para o seu apreciado trabalho.
E lá íamos, contentes, para a “Praça”, para os “Postigos ou para a Porta de Montalvão, fazer uso público daquele brinquedo.
O Senhor Alberto e a casa onde morava há muito que deixaram de existir. O camartelo destruiu aquele velho edifício e no seu lugar surgiu outro mais moderno e mais feio também.
Mas, quando ali passo, recordo sempre, num misto de alegria e saudade, o Senhor Alberto, artista de bitôrras e piões, construtor de sonhos da minha infância.
(1) – Bitôrra: pião mais redondo e mais aperfeiçoado.
Gosto de fazer viagens à minha infância.
Redescobrir mundos e lugares, pessoas e tradições que o tempo corroeu. Gosto de me embrenhar no tempo, de reinventar sensações, de correr célere pelos caminhos da minha meninice.
Como era diferente essa época...
Percorríamos ruas e becos, chãos e tapadas, azinhagas, brincávamos aqui e ali, onde calhava, com um prazer sempre renovado.
Havia também as pessoas que entravam na nossa vida e que ajudavam a transformar esse mundo infantil, povoado de sonhos e fantasia.
O Senhor Alberto era uma dessas figuras.
Era um velho carpinteiro que tinha a sua oficina numa das ruelas da vila, ali a dois passos da “Praça”.
Vivia só e mal, como quase todos os artistas daqueles negros tempos, mas nunca lhe ouvi um queixume, uma frase mais azeda ou a despropósito.
De resto, falava pouco, sempre metido consigo próprio, abrindo excepção quando contactava com as crianças que amiúde o visitavam.
O sorriso espontâneo com que nos recebia denotava uma grande afeição e ternura. Via-se, claramente, que gostava de crianças...
De outro modo não permitiria a “invasão” da sua modesta e acanhada oficina nem a desarrumação em que a deixávamos. Tive sempre a sensação que representávamos para ele, sei lá, um mundo, uma parte importante da sua vida, abruptamente cortada.
A sua fabriqueta, na pequena casa da rua da Cadeia, dispunha de um torno e uma bancada, num espaço bastante reduzido.
Ali se encontravam, no mais completo desalinho – que nós ajudávamos a tornar pior – os mais diversos objectos: partes de cadeiras, de móveis, janelas, madeiras por trabalhar, ferramentas. Um “caos”.
O torno era o seu principal instrumento de labor, onde vagarosa mas habilmente ia dando forma aos mais (para nós) complicados trabalhos de carpintaria fina.
Ali passei, com outros companheiros de escola e de brinca, muitas tardes observando aquele velho e paciente artífice, que nos dirigia – qual avô universal – palavras de afecto e carinho.
Tinha uns olhos encovados, o Senhor Alberto. Neles se vislumbrava, bem no fundo, uma grande melancolia.
O sofrimento não deve ter poupado aquele homem bondoso.
O cabelo, já um tanto descomposto e gasto, descia-lhe pela cabeça em pequenas falripas. Um bigodinho branco da cor do cabelo, ajudavam-lho o sorriso com que corajosamente nos enfrentava.
As suas mãos pequenas, de artista, faziam prodígios nos trabalhos que lhe pedíamos:
- Senhor Alberto, faça-me daqui uma bitôrra (1).
E estendíamos-lhe um pedaço de azinho, a que ele sucessivamente ia dando formas até o transformar num objecto de brincadeira.
Doze, quinze tostões, às vezes apenas um sorriso, bastavam para o seu apreciado trabalho.
E lá íamos, contentes, para a “Praça”, para os “Postigos ou para a Porta de Montalvão, fazer uso público daquele brinquedo.
O Senhor Alberto e a casa onde morava há muito que deixaram de existir. O camartelo destruiu aquele velho edifício e no seu lugar surgiu outro mais moderno e mais feio também.
Mas, quando ali passo, recordo sempre, num misto de alegria e saudade, o Senhor Alberto, artista de bitôrras e piões, construtor de sonhos da minha infância.
(1) – Bitôrra: pião mais redondo e mais aperfeiçoado.
Mário Mendes