Almirante Marquês de Nisa
Introdução
Há cerca de um ano, no passado dia 2 de Setembro de 2008, em cerimónia pública presidida pelo Presidente da República de Malta, Sr. Dr. Edward Fenesh Adami, teve lugar o descerramento de uma placa evocativa do auxílio prestado pela Esquadra Portuguesa, comandada pelo Marquês de Nisa, à revolta das populações das ilhas de Malta e Gozo, contra a então vigente ocupação francesa.
A cerimónia teve lugar nos “Upper Barracks Gardens” e foi iniciativa de um conjunto de intelectuais de Malta, entre os quais o Dr. Henry Frendo que, na altura, proferiu a palestra “Making Amends with History: a vindication of Maltese‑Portuguese Relations”. Neste evento estiveram presentes, o Embaixador de Portugal, Dr. Russo Dias, um representante da Marinha Portuguesa, o C/Alm. MN Rui Abreu, e muitas personalidades da sociedade local. Os media deram grande cobertura a este acontecimento, que se inseriu nas comemorações do aniversário da revolta pró‑indepêndencia de Malta, que ocorrera há precisamente duzentos e dez anos.
Enquadramento Histórico
Nos fins do séc. XVIII, Portugal era um pequeno Reino com cerca de três milhões de habitantes. A sua capital, Lisboa, com mais de 200.000 habitantes, florescia com o comércio do Brasil, da Índia e das Áfricas, sendo a sede de um importante império colonial. O Brasil, então já com cerca de três milhões de habitantes, de origem portuguesa, africana e indiana, fornecia produtos agrícolas e minérios, designadamente ouro e pedras preciosas.
A liberdade das comunicações marítimas era essencial para o funcionamento desta economia; daí, a importância da Aliança Britânica, com a potência marítima de então, com quem, a 16 de Setembro de 1793, foi assinado um novo tratado de Aliança, reforçando a aliança histórica entre os dois Reinos.
Com a vizinha Espanha existiam problemas de fronteira na América do Sul que foram resolvidas pelos Tratados de Santo Ildefonso (1777) e do Pardo (1778), a que se seguiram vários casamentos entre as Casas Reais de Bragança e de Bourbon. Estas boas relações foram consolidadas com o Tratado de Aliança assinado a 15 de Julho de 1793, pelo qual Portugal se comprometia a apoiar a Espanha, em caso de conflito militar.
Embora Portugal não tivesse declarado guerra à França Revolucionária, por força deste Tratado, envolveu‑se na Campanha do Rossilhão, onde participou uma divisão Portuguesa, com cerca de seis mil homens. Esta campanha, após alguns êxitos iniciais, acabou por correr mal, o que levou a Espanha a fazer a paz com a França, em Basileia, em Junho de 1795, e a tomar, posteriormente, uma posição política pró‑continental, abandonando assim o seu aliado português.
É neste enquadramento de política externa, entre uma França continental e uma Inglaterra marítima, que os interesses coloniais de Portugal levam a privilegiar a Aliança Britânica e a responder favoravelmente a um pedido de apoio naval para colaborar nas operações contra a França no Mediterrâneo.
Napoleão Bonaparte, então jovem general, a pedido das autoridades, comandou as forças militares que repõem a ordem pública em Paris, grangeando muito prestígio e tornando‑se assim politicamente incómodo. Apresentou, então, ao Directório, um projecto de expedição ao Egipto, com o objectivo de uma posterior ligação à Índia, onde grassava uma revolta contra a Inglaterra. A expedição foi prontamente aprovada, partindo de Toulon, com cerca de quarenta mil homens a bordo de mais de duzentos navios mercantes, escoltados pela Esquadra comandada pelo Almirante Brueys, composta por treze naus e quatro fragatas. Em princípios de Junho de 1798, entram em La Valetta, para reabastecer; como os Cavaleiros Hospitalários de São João de Jerusalém, também conhecidos por Cavaleiros de Malta, não autorizassem, Napoleão desembarcou tropas e, a 12 de Junho, conquistou a cidade, onde deixou o General Vaubois com cerca de quatro mil homens. Os derrotados Cavaleiros de Malta foram expulsos para Itália, assim como todos os cidadãos ingleses, russos e portugueses, que viviam naquelas ilhas.
A Marinha Portuguesa nos fins do séc XVIII
Sob a orientação do Ministro Martinho de Melo e Castro, a Marinha Portuguesa vivia, nos finais do séc XVIII, um período de grande expansão. O nosso importante comércio marítimo, aliás, requeria, para o proteger, um adequado poder naval. A Marinha dispunha, então, no Portugal Europeu, de treze naus, dezasseis fragatas, três corvetas, sete bergantins e oito charruas, a que acresciam ainda as forças navais surtas no Brasil e na Índia. Os navios eram modernos, bem armados e tripulados por cerca de catorze mil homens. O serviço da escolta aos comboios, a caça aos piratas do norte de África e algumas expedições, como o apoio ao ataque espanhol a Argel, em 1784, mantinham as guarnições bem treinadas e motivadas. Com estes meios organizavam‑se três forças navais: a Esquadra de Guarda‑Costas, a Esquadra do Estreito, com base em Algeciras ou Gibraltar, e a Esquadra do Mar Oceano, que pairava ao largo dos Açores e protegia a navegação proveniente do Brasil ou da Índia.
Na Marinha Portuguesa, serviam numerosos oficiais ingleses, contratados, que nela tiveram um desenvolvimento de carreira mais rápido do que os seus antigos camaradas, que se mantiveram na “Royal Navy”. Esta aparentemente fútil circunstância, no entanto, esteve na base de algum mal‑estar, de atritos mesmo, com a Esquadra Britânica do Mediterrâneo, pois os captains ingleses não aceitavam ser mais modernos e terem de servir sob as ordens dos seus antigos camaradas. O Almirante Nelson, infelizmente, tomou o partido dos seus comandantes.
O Marquês de Nisa
D. Domingos Xavier de Lima, filho segundo do Marquês de Ponte de Lima, nasceu em 1765. Casou em Lisboa, com pompa e circunstância, em 1790, com sua sobrinha Eugénia Maria, filha única do 6º Marquês de Nisa, 10º Conde da Vidigueira e 10º Almirante do Mar da Índia. O Marquesado de Nisa foi um presente de casamento do Príncipe Regente, a D. Domingos, que assim passou a usar os titulos nobiliárquicos de sua mulher.
D. Domingos cedo ouviu o apelo do mar: em 1781 embarcou como voluntário, na nau “Nossa Senhora do Pilar”, frequentando no ano seguinte a recém‑criada Academia Real de Marinha. Promovido a tenente‑de‑mar, embarcou na nau “Nossa Senhora do Bom Sucesso”, tendo participado na expedição a Argel, como chefe do estado‑maior da força naval portuguesa, composta por duas naus e duas fragatas. O Príncipe Regente, satisfeito com o comportamento desta força, mandou promover ao posto imediato todos os oficiais que participaram na expedição, do que resultou a promoção de D. Domingos a capitão‑tenente, aos vinte anos de idade. Aos vinte e quatro anos, era capitão‑de‑fragata e comandante da fragata “Príncipe do Brasil”, de quarenta peças. Dois anos volvidos, aos vinte e seis anos de idade, era capitão de mar‑e‑guerra e comandante da nau “Vasco da Gama”, de setenta e quatro peças, na qual participou na Esquadra do Canal, de apoio à “Royal Navy”, que operou na Mancha, em 1793 e 1794.
Como voluntário, participou na Campanha do Rossilhão, em terra, onde se notabilizou nas tomadas de Colliure e Sainte Elne, após o que, voltou a Portugal e reingressou na Marinha.
Em Setembro de 1795, era promovido a chefe de divisão, equivalente a comodoro, e nomeado Comandante da Esquadra de Guarda‑Costas, a bordo da nau “Rainha de Portugal”, de setenta e quatro peças. Em Junho de 1797, com trinta e um anos de idade, é promovido a chefe de esquadra, o equivalente a contra‑almirante e nomeado Comandante de uma Esquadra composta por cinco naus e duas fragatas, com a missão de proteger a navegação dos corsários franceses.
Embora jovem, o Marquês de Nisa era um oficial prestigiado, conhecedor da arte e da ciência da navegação e da marinharia, com experiência de combate e de comando, quer ao nível de unidade naval, quer ao nível de força naval.
A Esquadra do Mar Oceano no Mediterrâneo
Em princípios de Maio de 1798, o Marquês de Nisa recebeu ordem para assumir o comando de uma Esquadra, que se destinava a cooperar com a “Royal Navy” no Mar Mediterrâneo, largando de Lisboa com este objectivo a cinco de Maio. Reuniu na Baía de Lagos, as suas forças, a saber:
– Nau “Príncipe Real”, de 90 peças, 948 tripulantes, Comandante Cdro Conde de Puysegur;
– Nau “Rainha de Portugal”, de 74 peças, 605 tripulantes, Comandante Cdro Thomas Stone;
– Nau “Afonso de Albuquerque”, de 64 peças, 576 tripulantes, Comandante Cdro Donald Campbell;
– Nau “S. Sebastião”, de 64 peças, 564 tripulantes, Comandante Cdro Simpson Mitchell;
– Fragata “Benjamim”,de 24 peças, 120 tripulantes, Comandante Cap‑ten George Thompson;
– Bergantim “Falcão”, de 24 peças, 100 tripulantes, Comandante Cap‑ten Miguel Oliveira Pinto.
A treze de Julho, depois de reabastecer, largou a Esquadra de Lagos, após Nisa se ter avistado com o Almirante Jervis, então embarcado ao largo de Cadiz, bloqueando aquele porto. Jervis, deu‑lhe então, instruções, para se juntar ao Almirante Bronte Nelson, seu subordinado, no Mediterrâneo. A Esquadra portuguesa passou ao sul da Córsega, a vinte e seis de Julho, desceu a costa italiana após o que, aproou a Creta e a Alexandria, onde chegou a vinte e sete de Agosto. Em seguida, meteu leme para o sul da Sicília, procurando encontrar Nelson que, no dia um de Agosto, havia surpreendido e destruído a Esquadra de Brueys, na Batalha do Nilo, em Aboukir. Em dezoito de Setembro, foram recebidas instruções escritas de Nelson, transmitidas pelo bergantim “Flora”, para bloquer a ilha de Malta, que se encontrava próxima, o que Nisa inicia logo no dia seguinte.
O primeiro período de bloqueio termina a vinte e seis de Outubro, largando, então, a Esquadra Portuguesa para Nápoles. Segue‑se a expedição a Liorne e, quando do ataque francês a Nápoles, a ingrata tarefa de destruir os navios napolitanos surtos no porto, para evitar a sua queda em mãos francesas, e a retirada para a Sicília. Posteriormente, os navios são utilizados, cada um de per si, em diversas tarefas, após o que, participam na reconquista da cidade de Nápoles, bloqueando a costa, ocupando ilhas e desembarcando tropas para atacar as guarnições francesas de alguns fortes.
Não existiam relações diplomáticas entre o Reino de Portugal e as Regências de Argel, Tunis e Tripoli, em cujos portos estavam baseados numerosos navios corsários que atacavam, com frequência, a navegação mercante portuguesa. Contudo, existia um tratado de paz entre o Reino Unido e aquelas Regências. O Marquês de Nisa sugeriu, então, a Nelson o envio da nau “Afonso de Albuquerque” a Tripoli, com a dupla missão de eliminar a influência francesa e negociar uma trégua com Portugal. Em Maio de 1799, depois de um curto bloqueio à cidade, são estabelecidas negociações que tiveram total sucesso; ficou assegurada a paz entre a Regência de Tripoli e o Reino de Portugal e foi eliminada a presença francesa, embarcando o consul os cidadãos franceses, ali residentes, a bordo da nau portuguesa. O sucesso alcançado, em Tripoli, levou o Marquês de Nisa a propor a Nelson uma acção semelhante em Tunis. Como não houvesse, na altura, um navio português disponivel, Nelson cedeu o brulote “Stromboli” onde embarcou o Capitão‑de‑mar‑e‑guerra Rodrigo Pinto Guedes, chefe do estado‑maior da Esquadra Portuguesa que, em Novembro de 1799, se deslocou a Tunis e negociou, com sucesso, um acordo de paz entre o Reino de Portugal e aquela Regência.
Em vinte e cinco de Agosto, Nelson designa, de novo, o Marquês de Nisa, para o bloqueio da ilha de Malta. Em nove de Outubro, contudo, o bergantim “Gaivota do Mar” trouxe ordens de Lisboa para dar por terminada a missão e regressar. O Marquês de Nisa porém, foi sensível aos pedidos instantes de Nelson para não abandonar Malta sem ser rendido, o que só veio a acontecer a treze de Dezembro. Depois de reabastecer e proceder a algumas reparações, em Palermo, Nisa inicia então, o regresso a Lisboa, a doze de Fevereiro, entrando a barra do Tejo em fins de Abril de 1800. Vejamos, então, mais em pormenor, o que se passou em Malta.
O Bloqueio de Malta (I período)
Como já anteriormente referido, a revolta da população de Malta contra a ocupação francesa ocorreu a dois de Setembro de 1798. De imediato, são enviadas cartas ao Rei das Duas Sicílias (ou de Nápoles) e a Nelson, pedindo auxílio em armas, munições, provisões e apoio militar. Os malteses, de uma população de cerca de cem mil habitantes, levantaram mais de dez mil voluntários, mas escasseava o armamento, a disciplina era fraca e faltavam conhecimentos militares. A situação militar era muito difícil, face às sortidas francesas, de mais de quinhentos soldados, provenientes dos fortes de La Valletta, onde se abrigavam.
A chegada da Esquadra Portuguesa, a dezanove de Setembro, teve grande importância psicológica, animando as forças maltesas que puseram cerco à cidade. Nisa recebe representantes de Malta e de Gozo, a quem promete apoio, cede‑lhes quinhentos mosquetes e vários barris de pólvora e desembarca o Cap‑ten António Gonçalves Pereira e vinte artilheiros para servirem em terra, junto dos malteses. De imediato estabelece um rigoroso bloqueio ao porto de La Valletta, onde se abrigavam a nau “Guillaume Tell” e as fragatas “Justice” e “Diane”, que haviam logrado escapar de Abukir. Em seguida, escreve uma carta ao General Vaubois, que intima a render‑se, mas que não tem resposta positiva.
Em vinte e seis de Outubro, após ter sido substituído pelo Captain Alexander Ball, Nisa retira‑se para Nápoles, para reabastecer. Em terra, a pedido dos malteses, deixou o Cap‑ten Gonçalves Pereira e mais alguns homens. Neste período foi mantido um rigoroso bloqueio a La Valletta, tendo sido apresados nove navios ou embarcações. De notar que, dois dias após a partida da Esquadra Portuguesa, a vinte e oito de Outubro, a guarnição francesa de Gozo se rendeu.
O Bloqueio de Malta (II período)
Em vinte e cinco de Agosto de 1799, Nelson nomeia, de novo, Nisa para assegurar o bloqueio de Malta. Desta vez, para além das unidades portuguesas, Nisa dispõe de três naus britânicas: “Alexander”, “Audacious” e “Lion”, todas de 74 peças. O Captain Ball, autorizado por Nelson, entregou o comando do navio ao seu Imediato e desembarcou, assumindo as funções de Comandante das Operações Terrestres, sem ficar subordinado a Nisa, como seria razoável.
Um rigoroso bloqueio a La Valletta é de novo instaurado e são desembarcados cerca de trezentos e cinquenta homens, de infantaria e de artilharia, comandados pelo já atrás citado Cap‑ten Gonçalves Pereira, que colaboram com as tropas de Malta e do Reino de Nápoles nas operações de cerco. Registam‑se diversas baixas, em combate ou por acidente, existindo referências, nos cemitérios de Tarxien e de Zejtung, à presença, entre outros, de Emmanuelle Francisco, Gonçalves Braga, Giochino Pereira e Johannes Silva, nomes que indiciam a presença portuguesa.
Em nove de Setembro é feita nova intimação de rendição ao General Vaubois, que é polidamente recusada.
Em nove de Outubro, como já atrás referido, chega o bergantim “Gaivota do Mar”, com despachos assinados a vinte sete de Julho e a um de Setembro, determinando o regresso imediato da Esquadra a Lisboa.
O Marquês de Nisa foi sensível aos aflitivos pedidos de Nelson e dos dirigentes malteses, tendo protelado por mais de dois meses, a execução das ordens recebidas de Lisboa. Com efeito, só após o desembarque de dois regimentos britânicos, vindos de Messina, é que reembarcou, a dez de Dezembro, a sua força de desembarque, largando de Malta a treze, após ter sido rendido pelo Comodore Troubridge. O “Congresso do Povo Maltês” enviou, nessa ocasião, a seguinte carta ao Marquês de Nisa:
“... são inumeráveis os motivos de agradecimento que esta fiel nação humildemente protesta a Vossa Excelência, com todo o respeito; ela renova este dever do seu reconhecimento e com unânime deliberação, o Congresso dos seus Representantes lhe envia quatro deputados, para exprimirem, a Vossa Excelência, os seus internos sentimentos...”
Conclusão
O auxílio prestado pelo Marquês de Nisa aos malteses, no início da revolta, quando poderiam ter sido presa fácil do exército regular francês, foi certamente determinante no sucesso daquela empresa. Por outro lado, ao não dar cumprimento imediato às ordens recebidas de Lisboa, mantendo‑se sob as ordens de Nelson, por mais cerca de dois meses, Nisa permitiu evitar uma quebra no bloqueio e um eventual reabastecimento das forças francesas.
Nos dois períodos em que comandou o bloqueio de Malta, Nisa e a sua força naval mostraram sempre grande determinação no cumprimento da missão: nenhum navio entrou ou saiu de La Valletta sem ser interceptado e inspeccionado, tendo sido feitos diversos apresamentos. A Esquadra Portuguesa concorreu assim, de modo significativo, para o sucesso aliado em Malta, e para a posterior rendição do General Claude‑Henri Vaubois.
O Marquês de Nisa mereceu, sem dúvida, as palavras de Nelson, algo avaro em elogios...
“A conduta de Vossa Excelência grangeou‑vos o amor e a estima do Governor Ball, de todos os oficiais e marinheiros Ingleses e de todo o povo maltês; e permita‑me que junte o nome de Nelson, como um dos vossos mais ardentes admiradores, quer como oficial, quer como amigo.”
Vice almirante Alexandre da Fonseca*
*Licenciado em Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Editor e director da publicação bimestral “Revista de Marinha”. É membro activo da Academia de Marinha, Sociedade de Geografia de Lisboa e da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.
Há cerca de um ano, no passado dia 2 de Setembro de 2008, em cerimónia pública presidida pelo Presidente da República de Malta, Sr. Dr. Edward Fenesh Adami, teve lugar o descerramento de uma placa evocativa do auxílio prestado pela Esquadra Portuguesa, comandada pelo Marquês de Nisa, à revolta das populações das ilhas de Malta e Gozo, contra a então vigente ocupação francesa.
A cerimónia teve lugar nos “Upper Barracks Gardens” e foi iniciativa de um conjunto de intelectuais de Malta, entre os quais o Dr. Henry Frendo que, na altura, proferiu a palestra “Making Amends with History: a vindication of Maltese‑Portuguese Relations”. Neste evento estiveram presentes, o Embaixador de Portugal, Dr. Russo Dias, um representante da Marinha Portuguesa, o C/Alm. MN Rui Abreu, e muitas personalidades da sociedade local. Os media deram grande cobertura a este acontecimento, que se inseriu nas comemorações do aniversário da revolta pró‑indepêndencia de Malta, que ocorrera há precisamente duzentos e dez anos.
Enquadramento Histórico
Nos fins do séc. XVIII, Portugal era um pequeno Reino com cerca de três milhões de habitantes. A sua capital, Lisboa, com mais de 200.000 habitantes, florescia com o comércio do Brasil, da Índia e das Áfricas, sendo a sede de um importante império colonial. O Brasil, então já com cerca de três milhões de habitantes, de origem portuguesa, africana e indiana, fornecia produtos agrícolas e minérios, designadamente ouro e pedras preciosas.
A liberdade das comunicações marítimas era essencial para o funcionamento desta economia; daí, a importância da Aliança Britânica, com a potência marítima de então, com quem, a 16 de Setembro de 1793, foi assinado um novo tratado de Aliança, reforçando a aliança histórica entre os dois Reinos.
Com a vizinha Espanha existiam problemas de fronteira na América do Sul que foram resolvidas pelos Tratados de Santo Ildefonso (1777) e do Pardo (1778), a que se seguiram vários casamentos entre as Casas Reais de Bragança e de Bourbon. Estas boas relações foram consolidadas com o Tratado de Aliança assinado a 15 de Julho de 1793, pelo qual Portugal se comprometia a apoiar a Espanha, em caso de conflito militar.
Embora Portugal não tivesse declarado guerra à França Revolucionária, por força deste Tratado, envolveu‑se na Campanha do Rossilhão, onde participou uma divisão Portuguesa, com cerca de seis mil homens. Esta campanha, após alguns êxitos iniciais, acabou por correr mal, o que levou a Espanha a fazer a paz com a França, em Basileia, em Junho de 1795, e a tomar, posteriormente, uma posição política pró‑continental, abandonando assim o seu aliado português.
É neste enquadramento de política externa, entre uma França continental e uma Inglaterra marítima, que os interesses coloniais de Portugal levam a privilegiar a Aliança Britânica e a responder favoravelmente a um pedido de apoio naval para colaborar nas operações contra a França no Mediterrâneo.
Napoleão Bonaparte, então jovem general, a pedido das autoridades, comandou as forças militares que repõem a ordem pública em Paris, grangeando muito prestígio e tornando‑se assim politicamente incómodo. Apresentou, então, ao Directório, um projecto de expedição ao Egipto, com o objectivo de uma posterior ligação à Índia, onde grassava uma revolta contra a Inglaterra. A expedição foi prontamente aprovada, partindo de Toulon, com cerca de quarenta mil homens a bordo de mais de duzentos navios mercantes, escoltados pela Esquadra comandada pelo Almirante Brueys, composta por treze naus e quatro fragatas. Em princípios de Junho de 1798, entram em La Valetta, para reabastecer; como os Cavaleiros Hospitalários de São João de Jerusalém, também conhecidos por Cavaleiros de Malta, não autorizassem, Napoleão desembarcou tropas e, a 12 de Junho, conquistou a cidade, onde deixou o General Vaubois com cerca de quatro mil homens. Os derrotados Cavaleiros de Malta foram expulsos para Itália, assim como todos os cidadãos ingleses, russos e portugueses, que viviam naquelas ilhas.
A Marinha Portuguesa nos fins do séc XVIII
Sob a orientação do Ministro Martinho de Melo e Castro, a Marinha Portuguesa vivia, nos finais do séc XVIII, um período de grande expansão. O nosso importante comércio marítimo, aliás, requeria, para o proteger, um adequado poder naval. A Marinha dispunha, então, no Portugal Europeu, de treze naus, dezasseis fragatas, três corvetas, sete bergantins e oito charruas, a que acresciam ainda as forças navais surtas no Brasil e na Índia. Os navios eram modernos, bem armados e tripulados por cerca de catorze mil homens. O serviço da escolta aos comboios, a caça aos piratas do norte de África e algumas expedições, como o apoio ao ataque espanhol a Argel, em 1784, mantinham as guarnições bem treinadas e motivadas. Com estes meios organizavam‑se três forças navais: a Esquadra de Guarda‑Costas, a Esquadra do Estreito, com base em Algeciras ou Gibraltar, e a Esquadra do Mar Oceano, que pairava ao largo dos Açores e protegia a navegação proveniente do Brasil ou da Índia.
Na Marinha Portuguesa, serviam numerosos oficiais ingleses, contratados, que nela tiveram um desenvolvimento de carreira mais rápido do que os seus antigos camaradas, que se mantiveram na “Royal Navy”. Esta aparentemente fútil circunstância, no entanto, esteve na base de algum mal‑estar, de atritos mesmo, com a Esquadra Britânica do Mediterrâneo, pois os captains ingleses não aceitavam ser mais modernos e terem de servir sob as ordens dos seus antigos camaradas. O Almirante Nelson, infelizmente, tomou o partido dos seus comandantes.
O Marquês de Nisa
D. Domingos Xavier de Lima, filho segundo do Marquês de Ponte de Lima, nasceu em 1765. Casou em Lisboa, com pompa e circunstância, em 1790, com sua sobrinha Eugénia Maria, filha única do 6º Marquês de Nisa, 10º Conde da Vidigueira e 10º Almirante do Mar da Índia. O Marquesado de Nisa foi um presente de casamento do Príncipe Regente, a D. Domingos, que assim passou a usar os titulos nobiliárquicos de sua mulher.
D. Domingos cedo ouviu o apelo do mar: em 1781 embarcou como voluntário, na nau “Nossa Senhora do Pilar”, frequentando no ano seguinte a recém‑criada Academia Real de Marinha. Promovido a tenente‑de‑mar, embarcou na nau “Nossa Senhora do Bom Sucesso”, tendo participado na expedição a Argel, como chefe do estado‑maior da força naval portuguesa, composta por duas naus e duas fragatas. O Príncipe Regente, satisfeito com o comportamento desta força, mandou promover ao posto imediato todos os oficiais que participaram na expedição, do que resultou a promoção de D. Domingos a capitão‑tenente, aos vinte anos de idade. Aos vinte e quatro anos, era capitão‑de‑fragata e comandante da fragata “Príncipe do Brasil”, de quarenta peças. Dois anos volvidos, aos vinte e seis anos de idade, era capitão de mar‑e‑guerra e comandante da nau “Vasco da Gama”, de setenta e quatro peças, na qual participou na Esquadra do Canal, de apoio à “Royal Navy”, que operou na Mancha, em 1793 e 1794.
Como voluntário, participou na Campanha do Rossilhão, em terra, onde se notabilizou nas tomadas de Colliure e Sainte Elne, após o que, voltou a Portugal e reingressou na Marinha.
Em Setembro de 1795, era promovido a chefe de divisão, equivalente a comodoro, e nomeado Comandante da Esquadra de Guarda‑Costas, a bordo da nau “Rainha de Portugal”, de setenta e quatro peças. Em Junho de 1797, com trinta e um anos de idade, é promovido a chefe de esquadra, o equivalente a contra‑almirante e nomeado Comandante de uma Esquadra composta por cinco naus e duas fragatas, com a missão de proteger a navegação dos corsários franceses.
Embora jovem, o Marquês de Nisa era um oficial prestigiado, conhecedor da arte e da ciência da navegação e da marinharia, com experiência de combate e de comando, quer ao nível de unidade naval, quer ao nível de força naval.
A Esquadra do Mar Oceano no Mediterrâneo
Em princípios de Maio de 1798, o Marquês de Nisa recebeu ordem para assumir o comando de uma Esquadra, que se destinava a cooperar com a “Royal Navy” no Mar Mediterrâneo, largando de Lisboa com este objectivo a cinco de Maio. Reuniu na Baía de Lagos, as suas forças, a saber:
– Nau “Príncipe Real”, de 90 peças, 948 tripulantes, Comandante Cdro Conde de Puysegur;
– Nau “Rainha de Portugal”, de 74 peças, 605 tripulantes, Comandante Cdro Thomas Stone;
– Nau “Afonso de Albuquerque”, de 64 peças, 576 tripulantes, Comandante Cdro Donald Campbell;
– Nau “S. Sebastião”, de 64 peças, 564 tripulantes, Comandante Cdro Simpson Mitchell;
– Fragata “Benjamim”,de 24 peças, 120 tripulantes, Comandante Cap‑ten George Thompson;
– Bergantim “Falcão”, de 24 peças, 100 tripulantes, Comandante Cap‑ten Miguel Oliveira Pinto.
A treze de Julho, depois de reabastecer, largou a Esquadra de Lagos, após Nisa se ter avistado com o Almirante Jervis, então embarcado ao largo de Cadiz, bloqueando aquele porto. Jervis, deu‑lhe então, instruções, para se juntar ao Almirante Bronte Nelson, seu subordinado, no Mediterrâneo. A Esquadra portuguesa passou ao sul da Córsega, a vinte e seis de Julho, desceu a costa italiana após o que, aproou a Creta e a Alexandria, onde chegou a vinte e sete de Agosto. Em seguida, meteu leme para o sul da Sicília, procurando encontrar Nelson que, no dia um de Agosto, havia surpreendido e destruído a Esquadra de Brueys, na Batalha do Nilo, em Aboukir. Em dezoito de Setembro, foram recebidas instruções escritas de Nelson, transmitidas pelo bergantim “Flora”, para bloquer a ilha de Malta, que se encontrava próxima, o que Nisa inicia logo no dia seguinte.
O primeiro período de bloqueio termina a vinte e seis de Outubro, largando, então, a Esquadra Portuguesa para Nápoles. Segue‑se a expedição a Liorne e, quando do ataque francês a Nápoles, a ingrata tarefa de destruir os navios napolitanos surtos no porto, para evitar a sua queda em mãos francesas, e a retirada para a Sicília. Posteriormente, os navios são utilizados, cada um de per si, em diversas tarefas, após o que, participam na reconquista da cidade de Nápoles, bloqueando a costa, ocupando ilhas e desembarcando tropas para atacar as guarnições francesas de alguns fortes.
Não existiam relações diplomáticas entre o Reino de Portugal e as Regências de Argel, Tunis e Tripoli, em cujos portos estavam baseados numerosos navios corsários que atacavam, com frequência, a navegação mercante portuguesa. Contudo, existia um tratado de paz entre o Reino Unido e aquelas Regências. O Marquês de Nisa sugeriu, então, a Nelson o envio da nau “Afonso de Albuquerque” a Tripoli, com a dupla missão de eliminar a influência francesa e negociar uma trégua com Portugal. Em Maio de 1799, depois de um curto bloqueio à cidade, são estabelecidas negociações que tiveram total sucesso; ficou assegurada a paz entre a Regência de Tripoli e o Reino de Portugal e foi eliminada a presença francesa, embarcando o consul os cidadãos franceses, ali residentes, a bordo da nau portuguesa. O sucesso alcançado, em Tripoli, levou o Marquês de Nisa a propor a Nelson uma acção semelhante em Tunis. Como não houvesse, na altura, um navio português disponivel, Nelson cedeu o brulote “Stromboli” onde embarcou o Capitão‑de‑mar‑e‑guerra Rodrigo Pinto Guedes, chefe do estado‑maior da Esquadra Portuguesa que, em Novembro de 1799, se deslocou a Tunis e negociou, com sucesso, um acordo de paz entre o Reino de Portugal e aquela Regência.
Em vinte e cinco de Agosto, Nelson designa, de novo, o Marquês de Nisa, para o bloqueio da ilha de Malta. Em nove de Outubro, contudo, o bergantim “Gaivota do Mar” trouxe ordens de Lisboa para dar por terminada a missão e regressar. O Marquês de Nisa porém, foi sensível aos pedidos instantes de Nelson para não abandonar Malta sem ser rendido, o que só veio a acontecer a treze de Dezembro. Depois de reabastecer e proceder a algumas reparações, em Palermo, Nisa inicia então, o regresso a Lisboa, a doze de Fevereiro, entrando a barra do Tejo em fins de Abril de 1800. Vejamos, então, mais em pormenor, o que se passou em Malta.
O Bloqueio de Malta (I período)
Como já anteriormente referido, a revolta da população de Malta contra a ocupação francesa ocorreu a dois de Setembro de 1798. De imediato, são enviadas cartas ao Rei das Duas Sicílias (ou de Nápoles) e a Nelson, pedindo auxílio em armas, munições, provisões e apoio militar. Os malteses, de uma população de cerca de cem mil habitantes, levantaram mais de dez mil voluntários, mas escasseava o armamento, a disciplina era fraca e faltavam conhecimentos militares. A situação militar era muito difícil, face às sortidas francesas, de mais de quinhentos soldados, provenientes dos fortes de La Valletta, onde se abrigavam.
A chegada da Esquadra Portuguesa, a dezanove de Setembro, teve grande importância psicológica, animando as forças maltesas que puseram cerco à cidade. Nisa recebe representantes de Malta e de Gozo, a quem promete apoio, cede‑lhes quinhentos mosquetes e vários barris de pólvora e desembarca o Cap‑ten António Gonçalves Pereira e vinte artilheiros para servirem em terra, junto dos malteses. De imediato estabelece um rigoroso bloqueio ao porto de La Valletta, onde se abrigavam a nau “Guillaume Tell” e as fragatas “Justice” e “Diane”, que haviam logrado escapar de Abukir. Em seguida, escreve uma carta ao General Vaubois, que intima a render‑se, mas que não tem resposta positiva.
Em vinte e seis de Outubro, após ter sido substituído pelo Captain Alexander Ball, Nisa retira‑se para Nápoles, para reabastecer. Em terra, a pedido dos malteses, deixou o Cap‑ten Gonçalves Pereira e mais alguns homens. Neste período foi mantido um rigoroso bloqueio a La Valletta, tendo sido apresados nove navios ou embarcações. De notar que, dois dias após a partida da Esquadra Portuguesa, a vinte e oito de Outubro, a guarnição francesa de Gozo se rendeu.
O Bloqueio de Malta (II período)
Em vinte e cinco de Agosto de 1799, Nelson nomeia, de novo, Nisa para assegurar o bloqueio de Malta. Desta vez, para além das unidades portuguesas, Nisa dispõe de três naus britânicas: “Alexander”, “Audacious” e “Lion”, todas de 74 peças. O Captain Ball, autorizado por Nelson, entregou o comando do navio ao seu Imediato e desembarcou, assumindo as funções de Comandante das Operações Terrestres, sem ficar subordinado a Nisa, como seria razoável.
Um rigoroso bloqueio a La Valletta é de novo instaurado e são desembarcados cerca de trezentos e cinquenta homens, de infantaria e de artilharia, comandados pelo já atrás citado Cap‑ten Gonçalves Pereira, que colaboram com as tropas de Malta e do Reino de Nápoles nas operações de cerco. Registam‑se diversas baixas, em combate ou por acidente, existindo referências, nos cemitérios de Tarxien e de Zejtung, à presença, entre outros, de Emmanuelle Francisco, Gonçalves Braga, Giochino Pereira e Johannes Silva, nomes que indiciam a presença portuguesa.
Em nove de Setembro é feita nova intimação de rendição ao General Vaubois, que é polidamente recusada.
Em nove de Outubro, como já atrás referido, chega o bergantim “Gaivota do Mar”, com despachos assinados a vinte sete de Julho e a um de Setembro, determinando o regresso imediato da Esquadra a Lisboa.
O Marquês de Nisa foi sensível aos aflitivos pedidos de Nelson e dos dirigentes malteses, tendo protelado por mais de dois meses, a execução das ordens recebidas de Lisboa. Com efeito, só após o desembarque de dois regimentos britânicos, vindos de Messina, é que reembarcou, a dez de Dezembro, a sua força de desembarque, largando de Malta a treze, após ter sido rendido pelo Comodore Troubridge. O “Congresso do Povo Maltês” enviou, nessa ocasião, a seguinte carta ao Marquês de Nisa:
“... são inumeráveis os motivos de agradecimento que esta fiel nação humildemente protesta a Vossa Excelência, com todo o respeito; ela renova este dever do seu reconhecimento e com unânime deliberação, o Congresso dos seus Representantes lhe envia quatro deputados, para exprimirem, a Vossa Excelência, os seus internos sentimentos...”
Conclusão
O auxílio prestado pelo Marquês de Nisa aos malteses, no início da revolta, quando poderiam ter sido presa fácil do exército regular francês, foi certamente determinante no sucesso daquela empresa. Por outro lado, ao não dar cumprimento imediato às ordens recebidas de Lisboa, mantendo‑se sob as ordens de Nelson, por mais cerca de dois meses, Nisa permitiu evitar uma quebra no bloqueio e um eventual reabastecimento das forças francesas.
Nos dois períodos em que comandou o bloqueio de Malta, Nisa e a sua força naval mostraram sempre grande determinação no cumprimento da missão: nenhum navio entrou ou saiu de La Valletta sem ser interceptado e inspeccionado, tendo sido feitos diversos apresamentos. A Esquadra Portuguesa concorreu assim, de modo significativo, para o sucesso aliado em Malta, e para a posterior rendição do General Claude‑Henri Vaubois.
O Marquês de Nisa mereceu, sem dúvida, as palavras de Nelson, algo avaro em elogios...
“A conduta de Vossa Excelência grangeou‑vos o amor e a estima do Governor Ball, de todos os oficiais e marinheiros Ingleses e de todo o povo maltês; e permita‑me que junte o nome de Nelson, como um dos vossos mais ardentes admiradores, quer como oficial, quer como amigo.”
Vice almirante Alexandre da Fonseca*
*Licenciado em Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Editor e director da publicação bimestral “Revista de Marinha”. É membro activo da Academia de Marinha, Sociedade de Geografia de Lisboa e da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.