Nos últimos meses, os preços dos alimentos têm sido o principal motor
da inflação em Portugal. O custo de vida não está a ser devidamente avaliado
com base no indicador da inflação, que é o referencial usado nas negociações
salariais e na atualização das pensões e de outros apoios sociais.
Embora a inflação já não seja o tema que abre telejornais, o preço da
comida continua a ser notícia. Nos últimos meses, os preços dos alimentos têm
sido o principal motor da inflação em Portugal, com destaque para os casos da
fruta, cujo preço aumentou 10% entre o verão do ano passado e o deste ano, e do
café, chá e cacau, que viram os preços subir mais de 12% neste período.
Não é um fenómeno novo. Desde que as medidas de confinamento da
pandemia foram gradualmente retiradas e a atividade económica voltou ao normal,
a alimentação tem sido uma das áreas em que os preços mais têm subido. Entre
2020 e 2024, os preços dos alimentos subiram 34%, bastante acima da média dos
preços da economia portuguesa, medida pela inflação, que registou uma subida de
20% durante este período.
Os preços dos alimentos estão entre os mais salientes na economia, uma
vez que são bens essenciais e representam uma das principais fatias da despesa
das pessoas. Tendo em conta que o custo de vida continua a estar no topo das
preocupações expressas nos inquéritos às pessoas, é importante perceber: o que
é que está por detrás da inflação alimentar, que grupos é que são mais afetados
por esta tendência e que respostas é que deviam ser adotadas.
O que explica a inflação dos alimentos?
O aumento acentuado dos preços dos produtos alimentares não é um
fenómeno exclusivo de Portugal. Na verdade, desde 2022, a elevada inflação
alimentar tem sido registada um pouco por todo o mundo. O índice de preços da
comida, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura, disparou em 2022 e atingiu valores historicamente elevados, com
aumentos especialmente pronunciados no azeite, cereais, leite e açúcar.

Embora existam vários fatores que contribuíram para a subida (como a
guerra entre a Rússia e a Ucrânia, dois dos principais exportadores mundiais de
cereais, que levou a um aumento dos seus preços nos primeiros meses), há um que
tem sido apontado como origem de impactos persistentes: as alterações
climáticas. Um estudo publicado em julho deste ano por uma equipa internacional
de cientistas, que analisaram variações de preços em 18 países entre 2022 e
2024, concluiu que “os picos de preços estiveram associados a fenómenos
extremos de calor, seca ou precipitação intensa, vários dos quais tão extremos
que ultrapassaram todos os precedentes históricos anteriores a 2020”.
O estudo documenta o impacto dos vários fenómenos climatéricos extremos
na produção e no custo dos alimentos. Os períodos de seca extrema contribuíram
para disrupções na produção e na oferta de vegetais nos EUA, do café do Brasil
ou do azeite de Itália e Espanha. Já as ondas de calor atingiram de forma
severa a Índia e os grandes produtores de cacau (Gana e Costa do Marfim), ao passo
que a precipitação intensa e as cheias tiveram impactos que vão desde a
procução de batatas no Reino Unido à de alfaces na Austrália. Em todos os
casos, os preços dos produtos dispararam na sequência destes fenómenos.
Este estudo reforça os resultados de uma análise anterior, publicada
por investigadores do Banco Central Europeu (BCE) e centrada na dinâmica dos
preços na Europa. A conclusão da análise é que, em 2022, as
temperaturas-recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos
entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais. Com o aquecimento projetado para a Europa
nos próximos anos, os autores apontavam para um aumento da taxa de inflação dos
alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2
pontos percentuais na taxa de inflação total.
Também é preciso ter em conta que o surto inflacionista foi acompanhado
por um aumento extraordinário dos lucros das empresas. A nível internacional,
as principais empresas comercializadoras de produtos agrícolas viram os seus
lucros triplicar e, em muitos países, o setor da grande distribuição também
registou lucros recorde. Em Portugal, os lucros da Jerónimo Martins e da Sonae
- donas, respetivamente, do Pingo Doce e do Continente - quase duplicaram entre
2019 e 2023 e, apesar da desaceleração em 2024, mantêm-se ainda bastante acima
dos valores anteriores ao início do surto inflacionista.

O artigo “Sellers’ inflation, profits and conflict: why can large firms
hike prices in an emergency?”, de Isabella Weber e Evan Wasner, dá-nos pistas
para compreender o papel que as empresas desempenham num surto inflacionista.
Em condições normais, as empresas evitam aumentar preços de forma unilateral
devido ao receio de perder clientes para vendedores que concorrem no mesmo
mercado. No entanto, há períodos em que este cenário se altera. Quando um
choque gera um aumento dos custos das empresas num determinado setor, se estas
quiserem manter as taxas de lucro inalteradas, terão de aumentar os preços que
cobram em simultâneo.
Neste contexto, como todas as empresas do mesmo setor aumentam os seus
preços, nenhuma corre o risco de perder clientes para a concorrência. Além
disso, o tipo de constrangimentos da oferta que se registaram nos últimos anos,
amplamente noticiados pelos meios de comunicação e referidos pelas empresas,
contribuíram para a sensação de “legitimidade” das subidas de preços. Desta
forma, disrupções provocadas pelo clima extremo tiveram como consequência um
aumento temporário do poder das empresas para subir preços sem afastar
clientes.
O exemplo do cacau é ilustrativo: depois das más colheitas nos
principais países produtores, devido à sucessão de chuvas intensas e períodos
de seca severa, o preço do cacau nos mercados internacionais subiu
vertiginosamente e traduziu-se num aumento dos preços do chocolate nos
supermercados. Ao mesmo tempo, as principais multinacionais do setor (Montelez,
Ferrero, Mars ou Lindt) viram os seus lucros aumentar de forma significativa, o
que permitiu distribuir dividendos generosos aos acionistas.
Algumas das grandes empresas que viram os seus lucros disparar
argumentaram que as margens de lucro se mantiveram essencialmente estáveis. No
entanto, mesmo a manutenção das margens revela o enorme poder de mercado que
lhes permite proteger os lucros à custa dos consumidores e de muitos pequenos
produtores. É isso que explica os ganhos avultados no setor agro-industrial,
onde as cinco maiores empresas internacionais controlam 70% do comércio
internacional, ou na distribuição, onde o mercado é tipicamente dominado pelos
grandes supermercados.
A fatura é igual para todos?
A subida dos preços dos alimentos não afeta todos da mesma maneira. O
impacto no poder de compra das pessoas depende dos seus padrões de consumo e
estes variam consoante o rendimento. Tipicamente, as pessoas com salários ou
pensões mais baixas gastam uma parte maior do seu rendimento com a alimentação.
Os dados do INE confirmam-no: as despesas com alimentos representam mais de 17%
do orçamento das pessoas com rendimentos mais baixos, mas apenas 10% do
orçamento dos mais ricos.
O que isto significa é que a mesma taxa de inflação alimentar tem
impactos diferentes em grupos sociais diferentes. Neste caso, representa um
aumento mais acentuado do custo de vida para quem gasta uma percentagem maior
do seu rendimento nestes produtos. Por outras palavras, a subida dos preços dos
alimentos pesa mais na carteira de quem ganha menos.
Além disso, nem todas as categorias encareceram ao mesmo ritmo. Quando
vamos ao supermercado, a maioria dos alimentos que consumimos estão disponíveis
em mais do que uma variedade. Existem marcas de fabricante, mais caras, e
marcas brancas, normalmente mais baratas. Nos últimos anos, os dados sugerem
que a subida dos preços foi mais acentuada nas categorias que eram mais baratas
à partida – um fenómeno a que se tem chamado cheapflation. Uma análise recente
do Banco de Portugal confirmou este fenómeno nos supermercados nacionais e
concluiu que a maior diferença foi registada em produtos como a carne, peixe,
leite, queijo e ovos. Ou seja, alimentos que fazem parte das refeições da
maioria das pessoas.
Esta discrepância tende a penalizar as pessoas que ganham menos: quem
tem salários mais altos pode deixar de consumir produtos mais caros e trocá-los
pelo equivalente da marca branca para se proteger do impacto da inflação,
enquanto quem ganha menos, à partida, já escolhe tendencialmente os produtos
mais baratos. Mais uma vez, os dados sugerem que a inflação alimentar tem
afetado sobretudo as pessoas que ganham menos, com consequências não apenas
para o seu poder de compra mas também para os riscos de fome e desnutrição
entre os grupos mais vulneráveis da sociedade.
O que é que podemos fazer?
A resposta da economia convencional para lidar com surtos
inflacionistas passa pela subida das taxas de juro. O objetivo é “arrefecer” a
economia e reduzir a pressão sobre os preços. No entanto, esta abordagem é
ineficaz para lidar com constrangimentos da oferta de matérias-primas ou de
produtos alimentares, além de ser uma política regressiva do ponto de vista
distributivo. Uma resposta progressista à inflação passa necessariamente por
uma abordagem alternativa.
Primeiro, é preciso reconhecer que o custo de vida não está a ser
devidamente avaliado com base no indicador da inflação, que é o referencial
usado nas negociações salariais e na atualização das pensões e de outros apoios
sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, traduz-se em
aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida
dos preços.
Depois, são necessárias medidas para impedir que as grandes empresas
aproveitem disrupções da oferta para aumentar os seus ganhos. Nesses contextos,
justificam-se medidas como a limitação das margens de lucro ou a introdução de
impostos sobre lucros extraordinários, que permitem desincentivar práticas
especulativas e/ou redistribuir os ganhos extraordinários de forma a compensar
os grupos mais afetados pela inflação.
De um ponto de vista mais estrutural, a discussão tem-se centrado em
torno de medidas de estabilização à escala nacional ou internacional. Uma das
alternativas propostas é a criação de stocks de reserva de bens alimentares (e
outras matérias-primas), que permitem aos países estabilizar a oferta e evitar
oscilações excessivas dos preços. Este tipo de reservas existe em vários países:
os EUA têm uma reserva estratégica de petróleo; a China e a Índia possuem
reservas de cereais; o Japão anunciou que vai mobilizar as reservas de arroz
para combater o aumento dos preços; na Polónia, o governo recorreu às reservas
de manteiga com o mesmo objetivo.
Além disso, é necessário investir em medidas de adaptação às alterações
climáticas, o que requer uma discussão mais abrangente sobre a transformação
dos sistemas de produção e distribuição de bens essenciais. Como argumenta o
economista James Meadway, “à medida que a crise de adaptação [às alterações
climáticas] se acentua, é expectável que sejamos confrontados com questões mais
determinantes: sobre como produzimos o que comemos, quem o produz e como
deveria ser distribuído de forma justa”.
* Vicente Ferreira - 13 de outubro 2025
Texto e fotos retirados de www.esquerda.net