No passado distante, cerca de meio século, existiam as
queijarias na Zona das Areias do nordeste alentejano, em que se integram os
concelhos de Nisa e Castelo de Vide. Cada lavrador tinha a sua queijeira, para
laborar em queijo o leite das suas ovelhas e cabras.
A queijeira constituía uma actividade complementar da
exploração agro-pecuária.
Essas unidades estavam instaladas em casas do campo, dos
quintais, adaptadas para o efeito, e nas residências dos produtores de pequena
dimensão.
O leite de ovelha e de cabra para queijar, era obtido da
ordenha, após o desmame das crias. A laboração era temporária, decorria do
início de Março aos fins de Junho – até ao S. Pedro, como por lá se dizia.
Os lavradores ou produtores procuravam que a queijeira
ficasse dentro ou perto da folha em alqueive, para encurtar a distância do
transporte do leite e para melhor se aproveitar o estrume da pernoita do
rebanho no bardo volante, do alavão durante a ordenha no aprisco e da dormida
do fato cabrio.
Na zona só se vendia o pouco leite de cabra que se bebia. O
leite para consumo directo era proveniente, normalmente, de cabras de porta, na
sua grande maioria de raça serrana, adquiridas no termo da gestação ou de
recente parição, aos pastores da Gardunha que, de tempos a tempos, deambulavam
pelas povoações dos confins do Alentejo, com o fito do negócio.
O roupeiro era quase sempre o pastor da casa agrícola, por
vezes ajudado pela sua mulher. Num ou outro caso o roupeiro –homem ou mulher –
era estranho ao rebanho, isto é eram recrutados para esse fim.
O cargo de roupeiro era trabalhoso, exigia aplicação, saber,
esmero e até paciência. “O queijo quer a mão do roupeiro, no fazer e na curado
queijo”.
Recordo-me que nas férias da Páscoa, dos primeiros anos
liceais, ia cedo para a queijeira da nossa casa, na Tapadinha ou nos Barrinhos,
para ver fazer os queijos e á tarde ver com os Rabaças – pai e filho – pastor
do alavão e cabreiro, os ninhos de perdiz que tinham achado.
O ti Motaco, era o decano dos roupeiros e dos pastores da
aldeia. Um profissional considerado e um bom homem. Tinha paciência,
aturava-me. Se chegava a horas fazia um queijo mais pequeno e menos feito da
mão para eu comer ao almoço, outras vezes sopas de zambana ou atabefe, na fala
local, de que eu gostava.
A zambana ou atabefe, é o almeice ou alméce doutras regiões,
é feita do soro e dos pequenos fragmentos da coalhada, que se escapam durante a
compressão manual do queijo durante a “feitura”.
Este sub-produto era apreciado e vendia-se na aldeia, mas o
seu destino principal era a alimentação de suínos.
Não me esqueço do temor do roupeiro pelo vento “suão”.
Dizia: “é muito ruim para o queijo!”. Nos dias em que soprava o “maldito vento”
mantinha as portas fechadas e calafetava a “frincha” da soleira da porta de
entrada com sacas velhas.
Não resisto à tentação de contar a cena a que assisti na
queijeira dos Barrinhos. Em dia quente de Junho, entre o S. João e o S. Pedro,
apareceu à tarde o carreteiro da casa, Brites a pedir uma “latoada” de zambana.
O ti Motaco, solícito, acedeu e ao dar-lhe o latão disse: “Olha a barriga!”. O
Brites consolou-se e pediu outra dose. A nova advertência do roupeiro, o Brites
respondeu: “O que sabe bem, nunca fez mal a ninguém!”. Não andou cem metros
para ter de arrear as calças. Da porta da queijeira o Motaco gritou: “Eu bem te
dizia”, e o Brites no mesmo tom, respondeu: “Tal é cá a porcaria, tão bem que sabe
e tão mal que faz!”.
O soro do queijo e depois a zambana adquirem propriedades
laxativas, de acção, logo que as cabras ingerem bagas de piorno, ricas em nitrato. As cabras são
gulosas por essa baga. Isso acontece a partir de Junho.
À margem do assunto e a título de divulgação que sempre usei
na actividade profissional, não deixo de referir que o temo do vento suão tinha
razão de ser. Pelo que aprendi nos dois cursos de lacticínios que fiz
post-escolar e por experiência própria, reconheci que os ventos secos – o suão,
o nordeste, a nortada (a vassoura do céu) do litoral do noroeste, abreviam a
secagem da superfície do queijo, levam à formação prematura da casca,
comprometem a reima – o suor do queijo – e impedem a conveniente expurgação do
soro, na fase inicial da cura do queijo. Como consequência, os queijos
racham-se e a massa fica esbroadiça , não se une.
Os queijos defeituosos e “ broeiros “ dos roupeiros
aproveitam-se ainda que no consenso geral os queijos de Março são tidos como os
melhores. As razões dessa melhoria filiam-se nas condições climáticas mais
favoráveis – temperatura mais baixa, humidade mais alta – na recolha e no
transporte do leite e no interior da queijeira. Acresce a influência das
pastagens – composição florística, estado vegetativo, digestibilidade – na
qualidade do queijo.
Nestas breves notas tentei recordar as queijeiras, as tão
tradicionais casas do queijo. Esse o meu propósito. As notas à margem são
evocações que me são gratas e que deixo à curiosidade dos leitores.
José Carrilho Ralo
* Este trabalho que iremos publicar, por capítulos, é da autoria do Dr.
José Carrilho Ralo (já falecido) e foi entregue num caderno, escrito à mão, em
Junho de 1997. Julgamos importante a sua divulgação, tanto pelo tema como pela
autoridade profissional e científica do conhecido veterinário natural de Póvoa
e Meadas.