23.6.15

Apontamentos sobre a Queijaria de Nisa e Castelo de Vide * - O Passado e o Presente (1)

 No passado distante, cerca de meio século, existiam as queijarias na Zona das Areias do nordeste alentejano, em que se integram os concelhos de Nisa e Castelo de Vide. Cada lavrador tinha a sua queijeira, para laborar em queijo o leite das suas ovelhas e cabras.
A queijeira constituía uma actividade complementar da exploração agro-pecuária.
Essas unidades estavam instaladas em casas do campo, dos quintais, adaptadas para o efeito, e nas residências dos produtores de pequena dimensão.
O leite de ovelha e de cabra para queijar, era obtido da ordenha, após o desmame das crias. A laboração era temporária, decorria do início de Março aos fins de Junho – até ao S. Pedro, como por lá se dizia.
Os lavradores ou produtores procuravam que a queijeira ficasse dentro ou perto da folha em alqueive, para encurtar a distância do transporte do leite e para melhor se aproveitar o estrume da pernoita do rebanho no bardo volante, do alavão durante a ordenha no aprisco e da dormida do fato cabrio.
Na zona só se vendia o pouco leite de cabra que se bebia. O leite para consumo directo era proveniente, normalmente, de cabras de porta, na sua grande maioria de raça serrana, adquiridas no termo da gestação ou de recente parição, aos pastores da Gardunha que, de tempos a tempos, deambulavam pelas povoações dos confins do Alentejo, com o fito do negócio.
O roupeiro era quase sempre o pastor da casa agrícola, por vezes ajudado pela sua mulher. Num ou outro caso o roupeiro –homem ou mulher – era estranho ao rebanho, isto é eram recrutados para esse fim.
O cargo de roupeiro era trabalhoso, exigia aplicação, saber, esmero e até paciência. “O queijo quer a mão do roupeiro, no fazer e na curado queijo”.
Recordo-me que nas férias da Páscoa, dos primeiros anos liceais, ia cedo para a queijeira da nossa casa, na Tapadinha ou nos Barrinhos, para ver fazer os queijos e á tarde ver com os Rabaças – pai e filho – pastor do alavão e cabreiro, os ninhos de perdiz que tinham achado.
O ti Motaco, era o decano dos roupeiros e dos pastores da aldeia. Um profissional considerado e um bom homem. Tinha paciência, aturava-me. Se chegava a horas fazia um queijo mais pequeno e menos feito da mão para eu comer ao almoço, outras vezes sopas de zambana ou atabefe, na fala local, de que eu gostava.
A zambana ou atabefe, é o almeice ou alméce doutras regiões, é feita do soro e dos pequenos fragmentos da coalhada, que se escapam durante a compressão manual do queijo durante a “feitura”.
Este sub-produto era apreciado e vendia-se na aldeia, mas o seu destino principal era a alimentação de suínos.
Não me esqueço do temor do roupeiro pelo vento “suão”. Dizia: “é muito ruim para o queijo!”. Nos dias em que soprava o “maldito vento” mantinha as portas fechadas e calafetava a “frincha” da soleira da porta de entrada com sacas velhas.
Não resisto à tentação de contar a cena a que assisti na queijeira dos Barrinhos. Em dia quente de Junho, entre o S. João e o S. Pedro, apareceu à tarde o carreteiro da casa, Brites a pedir uma “latoada” de zambana. O ti Motaco, solícito, acedeu e ao dar-lhe o latão disse: “Olha a barriga!”. O Brites consolou-se e pediu outra dose. A nova advertência do roupeiro, o Brites respondeu: “O que sabe bem, nunca fez mal a ninguém!”. Não andou cem metros para ter de arrear as calças. Da porta da queijeira o Motaco gritou: “Eu bem te dizia”, e o Brites no mesmo tom, respondeu: “Tal é cá a porcaria, tão bem que sabe e tão mal que faz!”.
O soro do queijo e depois a zambana adquirem propriedades laxativas, de acção, logo que as cabras ingerem bagas de piorno, ricas em nitrato. As cabras são gulosas por essa baga. Isso acontece a partir de Junho.
À margem do assunto e a título de divulgação que sempre usei na actividade profissional, não deixo de referir que o temo do vento suão tinha razão de ser. Pelo que aprendi nos dois cursos de lacticínios que fiz post-escolar e por experiência própria, reconheci que os ventos secos – o suão, o nordeste, a nortada (a vassoura do céu) do litoral do noroeste, abreviam a secagem da superfície do queijo, levam à formação prematura da casca, comprometem a reima – o suor do queijo – e impedem a conveniente expurgação do soro, na fase inicial da cura do queijo. Como consequência, os queijos racham-se e a massa fica esbroadiça , não se une.
Os queijos defeituosos e “ broeiros “ dos roupeiros aproveitam-se ainda que no consenso geral os queijos de Março são tidos como os melhores. As razões dessa melhoria filiam-se nas condições climáticas mais favoráveis – temperatura mais baixa, humidade mais alta – na recolha e no transporte do leite e no interior da queijeira. Acresce a influência das pastagens – composição florística, estado vegetativo, digestibilidade – na qualidade do queijo.
Nestas breves notas tentei recordar as queijeiras, as tão tradicionais casas do queijo. Esse o meu propósito. As notas à margem são evocações que me são gratas e que deixo à curiosidade dos leitores.
José Carrilho Ralo
* Este trabalho que iremos publicar, por capítulos, é da autoria do Dr. José Carrilho Ralo (já falecido) e foi entregue num caderno, escrito à mão, em Junho de 1997. Julgamos importante a sua divulgação, tanto pelo tema como pela autoridade profissional e científica do conhecido veterinário natural de Póvoa e Meadas.