28.9.10

Passeio a pé pela toponímia nisense (III)

A PORTA DA VILA
Prosseguimos o nosso passeio a pé pelas ruas e topónimos de Nisa.
Um passeio no qual revisitamos lugares, viajamos no tempo e sentimos o pulsar de cada artéria, largo ou ruela.
As ruas tal como as pessoas têm a sua história. Histórias onde entram muitas outras, mais pequenas, pedaços de épocas tão diferentes.
Histórias nas quais se entrecruzam a tristeza e a alegria, a dor e a festa, a guerra e a paz, o individual e o colectivo.
As ruas, tal como as pessoas também têm um nome: nomes que podem dizer muito, quase tudo, ou que nada significam.
Algumas até, tiveram já vários baptismos, no bom estilo “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” sofreram atentados e amputações, “viram” desaparecer um riquíssimo património histórico-cultural.
As ruas, as terras, são um pouco do que nós somos e, fazendo parte da nossa memória colectiva, da nossa identidade sócio-cultural merecem que olhemos para elas com consideração e respeito.
Deixemos o alerta e caminhemos...
Começámos esta série de textos pela Rua Direita, parámos na Praça e voltamos, hoje, ao ponto de partida: a Porta da Vila, principal entrada da primitiva Nisa e que D. Dinis mandou edificar.
Ao espaçoso largo defronte, o mais central e monumental de Nisa, foi posto em 1919 o nome de Serpa Pinto. Não percebemos porquê, mas os edis da altura terão tido as suas razões. É inegável que os feitos do explorador luso desbravando o sertão africano seriam dignos de registo toponímico, mas outras artérias estariam mais “receptivas” a essa função. Este largo, não!
Em 1981, novo baptismo. Por deliberação da Assembleia Municipal e no âmbito das comemorações dos 700 anos da fundação da vila, pretendeu-se homenagear o Dr. António Granja, ilustre médico, homem simples e dedicado ao bem comum, adversário do regime salazarista, republicano convicto, dando ao largo o seu nome.
A decisão do executivo municipal, não correspondeu, no entanto, nem à letra nem ao espírito da proposta.
O nome do insigne médico deveria ir para uma nova rua, das diversas que na altura se abriram. Nunca ao principal largo de Nisa.
Pior ainda foi feito com o busto do Dr. António Granja.
A solução arquitectónica de conjunto poderá encher de júbilo aqueles que o projectaram e fizeram (e, certamente, de algum proveito), mas está em oposição ao carácter do homem e do espírito social que foi o do Dr. Granja.
Um busto simples num espaço ajardinado no centro, como aquele que existia (apesar de pensarmos que um busto de D. Dinis estaria mais a propósito no largo monumental) ficaria mais a condizer com o viver simples e o cidadão de corpo inteiro que foi o Dr. Granja.
Quanto ao largo, por muitas voltas que a terra dê e por muitas designações que lhe ponham há-de ser sempre o da “Porta da Vila”.
Porta da Vila, entrada no “Japão” e na “Vila”, um espaço de memórias e vivências que toca, bem no fundo, a cada um dos nisenses.
A Porta da Vila era o “centro do mundo”. Um rodopio de gente a entrar e a sair, as inúmeras lojas de mercearias e salsicharia, padaria, de venda de frutas e hortaliças, sapateiros, barbeiros, farmácia e até, pasme-se, de electrodomésticos.
O primeiro café de Nisa “nasceu” ali, em Dezembro de 1945 e chamava-se “Restauração”, situado nos baixos da casa do senhor Carmona. Havia também, mais antigo e com o pomposo nome de Cervejaria (e casa de chá), o estabelecimento do senhor António Alberto, uma simpatia, e da senhora Joana, frequentada, sobretudo, pelos professores primários. Era ali que se compravam os “bolinhos da poupinha” e os rebuçados de meio tostão e nos sujeitávamos, por mais um rebuçado, a um “carolo” brincalhão do senhor António Alberto.
A Porta da Vila era um espaço de vida e de liberdade acorrentada. Por ali passavam inúmeras vezes, principalmente á noite, os guardas-republicanos, na sua farda azul escura com laivos verdes, vigiando o largo e as pessoas, “promovendo” a manutenção da boa ordem social.
Ao menor sinal de reunião de três ou mais pessoas surgia logo o aviso: “Toca a dispersar!”. Tempos tenebrosos, esses, em que a brincadeira de crianças ou a conversa entre adultos eram motivo de suspeita, de incriminação e, quantas vezes, de ida ao posto.
Hoje, está vazio o largo. Vazio de gente, de iluminação, de vida, de alegria. Mete dó, o principal largo histórico da minha terra. Há ali floreiras sem flores, casas sem gente, degradadas, a necessitarem de cara lavada e reparação urgente.
Noutras terras, a edilidade preocupa-se com estas coisas. Aqui, para ser diferente, cria entraves, coloca barreiras, instala burocracias que estimulam o desleixo e o abandono.
Na Porta da Vila começa o “centro histórico” de Nisa. Nome pomposo para a zona habitacional mais degradada da vila e para a qual têm “chovido” projectos e intenções nunca concretizados.
Vou caminhando, o largo fica para trás e a ele voltarei. Recupero a imagem de bonomia do senhor António Alberto, a dinâmica e o frenesim do dr. Aniceto, a alma boa e generosa da senhora Josefa Cebolais, o aprumo e a arrumação da mercearia do senhor António Jorge e lanço ainda um último olhar para o local onde esteve a sapataria na qual meu pai ganhava o pão.
Mário Mendes