Em 15 de Junho de 1821 o Diário da Regência, orgão oficial do Governo, publicava a seguinte Portaria: « Sendo presente á Regencia do Reino em Consulta da Meza do Desembargo do Paço datada em 2 do corrente, que quinhentas a seiscentas pessoas da Villa de Niza, e algumas outras das Villas, da Povoa, e Castello de Vide, concitados em tumulto, e assuada forão ao Matto Real da Povoa no dia 25 de Dezembro do anno proximo passado, quando o seu fructo ainda pertencia aos Rendeiros delle, Francisco Nununes Vizeu, e Companhia; e introduzindo gados de diversos donos, consumirão, e roubarão a lande, e boleta que ainda existia no dito Matto: que passando dahi á herdade do Pai Joanes, no termo da Villa de Niza, no mesmo tumulto e assuada entrárão em huns montados, os quaes igualmente pertencião aos ditos Rendeiros, consumindo com gados, e levando em bestas, e carros o fructo, que estava reservado, e guardado: que violentamente forão expulsos daquelles montados os porcos dos Rendeiros, a quem elles pertencião, sendo conduzidos alguns delles para a Villa de Niza como em segurança das Coimas, a que sugeitarão todos: que nestes violentos, e escandalosos factos, se demorarão os tumultuosos do dia 25 de Dezembro para o dia 26, e continuarão em maior, ou menor numero nos seguintes, destruindo arvores, para sustentar grandes fogueiras, até de todo extinguirem a lande, e boleta, que tudo isto foi praticado principalmente pelo Povo de Niza, havendo-se retirado ás primeiras vozes do Guarda dos mesmos Montados as pessoas das Villas da Povoa, e Castello de Vide, que solicitadas na vespera por Manoel Bernardo, e Francisco Carita, havião tambem concorrido: comportando-se o Povo com tal (...) absoluta nestes tumultuosos movimentos, que foi derribado do Cavallo, em que andava, e ameaçado de morte o Guarda dos montados, proferindo-se iguaes ameaças contra os Rendeiros se alli os apanhassem; que para taes procedimentos pretende ainda a Camara da Villa de Niza achar fundamento; procurando sustentar em sua resposta o bom Direito do Povo, para disfructar aquelles montados, que aliás por documento existentes no Arquivo da mesma Canara se mostrão de diverso dominio daquelle proprietario, que constantemente os tem disfructado por si, ou seus Rendeiros até o anno proximo passado; sendo que o Juiz de Fóra da mesma Villa, não authorisára, mas procurára socegar o Povo, e por pregões fizera declarar ainda quando o tumulto, e roubo continuava nas herdades de Pay Joannes, que ninguem voltasse a ella. E parecendo á Meza que huma verdadeira assuada o ajuntamento da gente, que praticou os factos, que causarão aos Supplicantes os damnos de que se queixão, se deve na fórma da Lei proceder a devassa, para se conhecer dos que dos que a convocárão, e praticarão, a fim de serem nos Juizos competentes condemnados nas penas da Lei, e no reçarcimento dos prejuizos, que se liquidar haverem causado aos Supplicantes; podendo ser Juiz da mencionada devassa o Corregedor da Comarca de Portalegre, que já tinha informado para a dita Consulta, o qual poderia ser juntamente encarregado de reprehender no Real Nome de Sua Magestade a Camara da Villa de Niza pelas falças razões, e motivos, com que pretende escusar os mencionados factos, e de igualmente a obrigar a retituir as Coimas, que injustamente houve do gado dos Supplicantes, por terem entrado na herdade de que erão Rendeiros: A Regencia do Reino tomando em consideração o referido, e tudo o mais que consta da referida Consulta: Manda em Nome d’El Rei o Senhor D. João VI, que a Meza faça proceder na conformidade do seu parecer: E pela Repartição dos Negocio da Guerra, se expede Ordem ao Governador das Armas da Provincia, para pôr à disposição do dito Corregedor trinta homens de Cavallaria, quando elle os pedir, participando-se a este, que se acompanhe delles, durante a diligencia: Manda outro sim que sejão riscados da Governança os nomes dos Membros da Camara, que infuirão, e sustentão o procedimento arbitrario, e tumultuoso do Povo, dando a Meza a este respeito a necessaria providencia, para que sejão substituidos convenientemente. O que tudo se participa á sobredita Meza, para sua inteligencia e execução. Palacio da Regencia em 15 de Junho de 1821. = Conde de Sampayo. = S. Luiz. = Carvalho. = Cunha. = Oliveira.»
Ficamos, assim, a saber que no dia de Natal de 1820, várias centenas de pessoas de Nisa, Póvoa e Castelo de Vide se juntaram em assuada e invadiram o Mato da Póvoa e a herdade de Pai Anes. Assuada é um termo que deriva do árabe onde tinha o sentido de protesto, passando para o português com esse significado, mas com o duplo-sentido de vaiar ou reclamar. Nos dias de hoje chamamos às assuadas manifestações. Esta manifestação de protesto das gentes de Nisa, Póvoa e Castelo de Vide parece ter sido preparada ao pormenor. Ainda mal se tinham extinguido os ecos da Revolução de Agosto desse ano e já a Câmara de Nisa, aproveitando o balanço da onda liberal que varria o País de Norte a Sul, organizava uma ocupação simbólica de terras pelo povo. O dia foi criteriosamente escolhido por ser Natal e, logo, haver menor capacidade de reacção dos proprietários, rendeiros ou das autoridades. O gado dos rendeiros foi expulso e apresado para pagamento de coimas, pretendendo, a Câmara, com este gesto, inverter, ainda que simbolicamente, o direito de propriedade daquelas terras.
Se a organização da assuada foi da responsabilidade da Câmara de Nisa, fica claro, pelo relato dos factos, que as câmaras da Póvoa e Castelo de Vide também colaboraram, pelo menos de início. Aliás aquelas terras diziam mais respeito ao povo destas duas vilas que, propriamente ao povo de Nisa, pois faziam parte do Morgado da Póvoa e eram os seus lavradores que, mediante foros, nelas trabalhavam. Há um facto referido na Portaria que descreve os acontecimentos que deixa perceber uma participação organizada e, de certo modo, diferenciada das gentes da Póvoa. Diz-se, a dado passo, que as pessoas da Póvoa e Castelo de Vide se retiraram às primeiras ‘vozes’ do guarda. Ora conseguir impôr uma tal disciplina a uma centena ou mais de pessoas amotinadas no meio de mais quinhentas ou seicentas, só com uma organização bem preparada e liderada, já que não foi, seguramente, o medo que originou a retirada, tanto mais que o pobre do guarda ainda foi derrubado do cavalo e ameaçado de morte.
Alguém estava, portanto, a orientar a participação dos povoenses na ocupação das terras e decidiu, no momoento, que considerou oportuno, demarcar-se do desenrolar das acções. De facto, era evidente para todos que, mais cedo ou mais tarde, a situação seria reposta a favor dos rendeiros, um extremar de posições acabaria por ser prejudicial, especialmente para quem teria que lidar o resto da vida com os proprietários e rendeiros. Como vimos o resultado final foi a condenação da Câmara de Nisa e a proibição dos seus membros poderem voltar á ‘governação’. Quem estava por detrás da participação das pessoas da Póvoa no movimento de protesto era alguém que considerava, por um lado, vantajosa a accção de protesto, mas, por outro, pretendia guardar uma certa distanciação que permitisse prosseguir uma estratégia autónoma. O envio às Cortes de uma petição sobre o conflito de interesses entre o proprietário e rendeiros do morgado da Póvoa e os lavradores da terra, apenas dois dias após a publicação da Portaria, deixa claro que o ou autores da petição era ou eram os mesmos que lideravam o movimento das pessoas da Póvoa.
José Carrilho Pereira é quem assina a referida petição na qualidade de Juíz Ordinário do Concelho de Póvoa e Meadas. Os juizes ordinários eram eleitos pelo povo dos concelhos, de acordo com o estabelecido nas Ordenações Filipinas, o juíz deveria ser o vereador mais velho. O juíz ordinário exercia a função judicial sendo-lhe apresentados, em primeira instância, todos os factos ocorridos na área do Concelho. Quanto à jurisdição cível, tinha alçada, sem apelo nem agravo, até 1000 reis nos bens móveis e 400 reis nos bens de raíz, em concelhos com mais de 200 vizinhos, nos outros a alçada para os bens móveis ia somente até aos 600 reis, o que devia ser o caso da Póvoa, por essa altura. No que diz respeito à jurisdição crime, julgava os casos de injúrias verbais, almoçataria e furto de escravos, também sem apelo nem agravo, sendo a alçada de 6000 reis para os primeiros casos e de 400 reis para o furto de escravos. Não há notícia de escravos, nesta época, na Póvoa, pelo que a acção de José Carrilho Pereira se limitaria aos pequenos conflitos, naturais entre habitantes da mesma terra.
Ao contrário do Juíz de Fora, nomeado pelo rei, que não podia execer na própria terra, nem nela ter quaisquer laços de parentesco, o Juíz Ordinário era um habitante da terra e, supõe-se que com prestígio, pois exercia o cargo por eleição. Como símbolo da sua autoridade o Juiz Ordinário possuía uma vara que, de acordo com o Código Filipino, devia empunhar sempre que andasse pela vila, em serviço a pé ou a cavalo, sob pena de uma multa de 500 reis.
Como membro do Concelho da vila, o juíz acabava também por participar nas acções de defesa dos direitos dos moradores do Concelho e, é nesse papel que vamos encontrar o Juíz Carrilho Pereira em 1821. Em 17 de Junho desse ano assina a seguinte petição às Cortes:
«Senhor,
O Soberano e Augusto Congresso da Nação que tão disveladamente tem solicitado os interesses d’ella e que tão sobejas provas tem dado de zelo e amor patriotico nas sabias decizoens que, admirando o mundo, vão pôr Portugal ao rival das naçoens mais illustradas, fazendo-lhe recuperar o lugar que o espirito do despotismo lhe havia feito perder, não pode deixar de lançar suas vistas de justiça e beneficencia sobre os infelizes habitantes d’esta villa que tiverão a disgraça de pertencer em sorte a hum donatario que por si e seus rendeiros não tem cessado de opprimilos. Este povo que vive de lavouras e criaçoens acha se reduzido a hum estado de mizeria de que só a mão poderosa de Vossa Magestade pode livralo.
Não contente o Donatario Marquez de Loulé de receber desta villa os muitos direitos que o foral lhe concede, elle os tem feito estender a medida da sua ambição, valendo-se da ignorancia e rusticidade deste povo. Que importa que o foral de que juntão copia authentica só permetta ao Donatario receber na Miada aos de fora renda das ervagens se o marquez a tem constantemente recebido dos mesmos da terra? Que importa que elles tenhão o direito de apascentar seus gados e cortar na defeza do Soveral em todo o tempo (porque isto só he prohibido aos de Castelo de Vide, nos tres mezes indicados no mesmo foral), se elles não gozão de similhante prerrogativa, são considerados como os de fora e pagão a lande se a precizão? De modo que a unica regalia que este povo conservava, de preferir aos de fora na compra da lande para conservação das criaçoens a que particularmente deve este destricto a sua subsistencia, foi acabada de annaquilar pelo actual rendeiro Manoel de São Thiago que, arrendando parte de montado aos de fora do termo e utilizando-se elle da outra parte, pôz os disgraçados criadores na triste necessidade de venderem seus porcos. Que importa que o Carvalho seja baldio para o povo se o mesmo rendeiro principia a espolialos da sua regalia?
Parece impossivel que este povo tenha athe agora vivido tão alucinado e ignorante dos seus deveres para com o donatario e tenha sido para com elle tão condescendente! Mas senhor, sendo este povo todo agricola, onde he rarissima a pessoa que saiba ler e onde ninguem possue os mais leves conhecimentos, facilmente se sugeita e he conduzido pelos rendeiros e feitores do Marquez, homens ardilosos e que só tem em vista o locupletarem-se e a seu amo. Hum povo composto de gente desta ordem, e em geral muito pobre, não podia disputar com o Marquez de Loulé, gentil homem da Camera e valido do Soberano, ainda que elle tivesse bem conhecido a extensão dos direitos do seu donatario, principalmente sendo como he dos rendeiros ou feitores a distribuição das terras em que devem lavrar porque todo o que ouzasse alçar a voz ficaria sem terras e sem ellas que faria? Quantas vezes os rendeiros fazem calar com ameaças na distribuição das terras qualquer que se oppoe, ainda que justamente, a suas pertenções ou extorssões?
Senhor, o povo desta villa tem vivido n’hua rigorosa escravidão: seus moradores pagão o 6º do pão que lavrão, e o 8º de linho e vinho; pagão ervagens sem as deverem; não são mantidos nas regalias que lhes permitte o foral, e são opprimidos por todos os modos.
A vista do que fica exposto e do foral, pertende este povo que Vossa Magestade lhe declare se em execução do decreto sobre direitos banaes deve ou não continuar a pagar os 3 alqueires de trigo que lhe manda o foral; se deve ser obrigado ao pagamento das ervagens na Meada, se deve ser conservado no uzo e posse de ser baldio o Carvalhal e que a distribuição das terras aos lavradores seja feita pela Camera que milhor do que ninguem conhece a necessidade de cada hum e a extensão de suas lavouras e finalmente se devem utilizar-se da defeza do Soveral. »
Pelo enunciado de queixas contido na petição percebe-se que os lavradores da Póvoa tinham razões de sobra para terem participado na assuada e que tal movimentação serviu de suporte ás reivindicações que decidiram apresentar ás Cortes.
A resposta à petição só chegou a 28 de Fevereiro de 1822, assinada por dois membros da Assembleia, com a indicação de que esta não considerava que o assunto devesse ser tratado pelas Cortes. Apesar desta resposta a Câmara da Póvoa enviou em Setembro desse ano uma carta de felicitações às Cortes e que ficou registada em acta na sessão de 28 de Setembro de 1822.
A 7 de Outubro de 1822, aproveitando a publicação da Lei dos Forais de 3 de Junho desse ano, a Câmara da Póvoa volta a enviar uma petição às Cortes centrada em dois pontos:
a) pagamento da renda de ervagens na Meada
b) pagamento de três alqueires de trigo, que ou devia ser abolido ou reduzido a metade, consoante a interpretação que fosse dada a esse direito do donatário.
A resposta foi ainda mais lacónica do que a anterior, reduzida a uma nota à margem, assinada por um tal Passanha.
Gostaríamos de saber mais sobre este juíz José Carrilho Pereira que, parece, seria um dos rarissímos povoenses que, na altura, saberiam ler e escrever. Infelizmente não é poosível adiantar mais sobre a sua personalidade a não ser a capacidade de liderança da comunidade que se deduz do facto de ter sido eleito para o cargo que exerceu e pela iniciativa de defesa dos direitos dos lavradores da Póvoa.
Quanto ao donatário, Marquêz de Loulé, de nome Agostinho Domingos de Mendonça, sabemos que entrou no senhorio de Póvoa e Meadas por herança de seu pai, José Maria de Mendonça e Moura, 7º Conde de Vale de Reis. Em 1801 combateu ao lado das tropas francesas e espanholas que invadiram Portugal, ao seviço de Napoleão. Por isso, foi preso e condenado à morte em 1811, no entanto, conseguiu fugir para o Brasil, acabando por obter o perdão em 1818, no Rio de Janeiro. Regressou a Portugal e acabou por ser assassinado em Salvaterra de Magos em 1824.
Como se pode constatar pelo teor das petições dos lavradores, o senhorio e o seu rendeiro Manuel de Santiago, visavam alcançar dois objectivos essenciais: a concentração da posse das terras e o aumento das rendas em dinheiro, pois que, à época, a simples posse da terra começava a não ser suficiente para a manutenção do estatuto de nobreza, cada vez mais o dinheiro se tornava fundamental. Para atingir os seus objectivos tomaram as seguintes medidas atentórias dos direitos dos lavradores: aumentaram de forma ilícita as rendas em dinheiro; expulsaram os camponeses que detinham direitos de exploração de determinadas terras para os poder substituir por outros que, sem direitos, pudessem ser obrigados a pagar rendas e apropriaram-se indevidamente de terras que constituíam baldios.
Apesar da derrota, inevitável, dada a desproporção de forças dos contendores e a indiferença do poder, há que realçar a coragem dos lavradores da Póvoa, liderados por José Carrilho Pereira, que ousaram enfrentar os seus opressores e puseram a nu a hipocrisia do poder, que se afirmava liberal e revolucionário. A luta dos lavradores da Póvoa acabou por trazer uma pequena mudança nas suas relações com os rendeiros. Na petição é claro que o principal visado pelas queixas é Manuel de Santiago, enquanto que, na portaria, se indica que os rendeiros são Francisco Nunes Vizeu e Companhia. Este último terá sub-arrendado as terras a Manuel de Santiago e esta sucessão de gente a pretender retirar rendimentos do trabalho dos lavradores: Marquês de Loulé, Francisco Nunes Vizeu e Manuel de Santiago é, em parte, responsável pelos abusos do rendeiro que se terão tornado um problema e que terão levado Francisco Nunes Vizeu a desfazer a sociedade com Manuel de Santiago de que deu conta em 21 de Outubro de 1823 em anúncio publicado na Gazeta de Lisboa.
A forma como o novo regime liberal saído da Revolução de 1820 encarou a questão agrária, afrontando simultãneamente os detentores da terra e os camponeses, visando criar as condições para um sistema de exploração agrícola moderno e liberto das peias dos morgadios, dos forais, dos pastos comuns, etc., acabaria por empurrar a grande maioria do mundo rural para uma posição reacionária à qual se juntaria também o clero e que apenas esperava quem se apresentasse como paladino da luta em defesa do Trono, do Altar e da Nação. D. Miguel, qual Arcanjo do mesmo nome, qual novo D. Sebastião, encarna o papel de redentor da Pátria e em 27 de Maio de 1823 encabeça a revolta absolutista conhecida por Vilafrancada, pois partiu de Vila Franca de Xira. A região de Portalegre aderiu em massa à causa de D. Miguel que, entre 2 e 4 de Junho de 1823 foi aclamado rei no Gavião, Nisa, Montalvão, Póvoa, Meadas, Castelo de Vide, Arez, Vila Flor, Alpalhão, Arronches, Elvas e Portalegre. Apenas nesta cidade terá havido alguma oposição por parte dos constitucionalistas liberais. A revolta não foi totalmente vitoriosa porque D. João VI decidiu recuperar a iniciativa e restaurou o absolutismo, mas mais moderado do que o que desejava D. Miguel e sua mãe D. Carlota Joaquina. Porém, menos de um ano depois, em 30 de Abrl de 1824, o partido de D. Miguel e D. Carlota iniciam nova revolta, conhecida por Abrilada, com vista ao derrube de D. João VI e à implantação total do regime absolutista. D. Miguel foi mais uma vez derrotado e exilado em Viena, mas haveria de voltar em 1828 e fazer-se aclamar rei. Estalou, então uma guerra civil que só terminaria em 1834 com a vitória definitiva do Liberalismo.
No decurso da guerra o lado absolutista utilizou todos os meios para obter formas de financiamento para o esforço de guerra, desde requisições de animais, especialmente cavalos, requisições de víveres, impostos especiais e donativos mais ou menos voluntários. Os povoenses não perdoaram a forma como haviam sido ignorados pelo regime vintista e apoiaram abertamente o miguelismo, contribuindo com donativos para o exército. Os primeiros de que há conhecimento foram, em 1829, António Correia Faustino que ofereceu um recibo de trinta e seis mil reis, que lhe eram devidos por uma égua, vendida em 1809 para o exécito e António Barreiros, o Velho, que ofereceu três recibos de valores que lhe eram devidos por vários géneros fornecidos ao exército em 1820 e 1827. No ano seguinte aparecem o Capitão João Marcelino com 12$000 reis e Manoel Rodrigues Miguel com 1$000 reis que, em conjunto com outros, totalizaram a quantia de 39$440 reis a que há a juntar 70 alqueires de trigo. Alguns anos mais tarde o apoio dos povoenses é ainda mais evidente e substtancial. No início do ano de 1832 há uma campanha para angariação de donativos entre os moradores da Póvoa, organizada pelo Vigário da Vara João Carrilho Semedo que doou 2.400 reis tendo os restantes contribuintes entregue a quantia de 3.140 reis. Em Setembro do mesmo ano há nova campanha de angariação de donativos que rendeu 58 alqueires de trigo, 23 alqueires de centeio, 12 alqueires de cevada e ainda um vale com a importãncia de 25,5 alqueires de trigo e 24 de centeio. Da lista de contribuintes consta José Carrilho Pereira, sem mais indicação do que a oferta de 1 alqueire de tigo e 1 de cevada. Em 1833 aparece, de novo, o Vigário João Carrilho Semedo com o donativo de 10 panos de linho da terra, o Capitão de Ordenanças João Marcello da Costa com 6 panos de estopa e João Domingos com 11 e ainda José Carrilho Faustino com uma manta ou um cobertor.
Para que conste a Gente da nossa Terra que apoiou então o regresso de D. Miguel foi, para além dos já nomeados, a seguinte:
Este episódio ilustra bem o resultado prático que advém da desilusão dos povos relativamente aos governos que, apregoando princípios progressistas, acabam por enveredar por políticas de sentido contrário. Como vimos, o povo da Póvoa, passou de uma posição de entusiástico apoio à Revolução de 1820 para uma posição de seguidismo do primeiro ‘Salvador da Pátria’. No nosso tempo já assistimos à vitória de Salazar, apesar de morto e enterrado, num concurso televisivo. Pode bem ser um sinal dos tempos e, os que se avizinham, não prometem nada de bom para o povo português.Se a organização da assuada foi da responsabilidade da Câmara de Nisa, fica claro, pelo relato dos factos, que as câmaras da Póvoa e Castelo de Vide também colaboraram, pelo menos de início. Aliás aquelas terras diziam mais respeito ao povo destas duas vilas que, propriamente ao povo de Nisa, pois faziam parte do Morgado da Póvoa e eram os seus lavradores que, mediante foros, nelas trabalhavam. Há um facto referido na Portaria que descreve os acontecimentos que deixa perceber uma participação organizada e, de certo modo, diferenciada das gentes da Póvoa. Diz-se, a dado passo, que as pessoas da Póvoa e Castelo de Vide se retiraram às primeiras ‘vozes’ do guarda. Ora conseguir impôr uma tal disciplina a uma centena ou mais de pessoas amotinadas no meio de mais quinhentas ou seicentas, só com uma organização bem preparada e liderada, já que não foi, seguramente, o medo que originou a retirada, tanto mais que o pobre do guarda ainda foi derrubado do cavalo e ameaçado de morte.
Alguém estava, portanto, a orientar a participação dos povoenses na ocupação das terras e decidiu, no momoento, que considerou oportuno, demarcar-se do desenrolar das acções. De facto, era evidente para todos que, mais cedo ou mais tarde, a situação seria reposta a favor dos rendeiros, um extremar de posições acabaria por ser prejudicial, especialmente para quem teria que lidar o resto da vida com os proprietários e rendeiros. Como vimos o resultado final foi a condenação da Câmara de Nisa e a proibição dos seus membros poderem voltar á ‘governação’. Quem estava por detrás da participação das pessoas da Póvoa no movimento de protesto era alguém que considerava, por um lado, vantajosa a accção de protesto, mas, por outro, pretendia guardar uma certa distanciação que permitisse prosseguir uma estratégia autónoma. O envio às Cortes de uma petição sobre o conflito de interesses entre o proprietário e rendeiros do morgado da Póvoa e os lavradores da terra, apenas dois dias após a publicação da Portaria, deixa claro que o ou autores da petição era ou eram os mesmos que lideravam o movimento das pessoas da Póvoa.
José Carrilho Pereira é quem assina a referida petição na qualidade de Juíz Ordinário do Concelho de Póvoa e Meadas. Os juizes ordinários eram eleitos pelo povo dos concelhos, de acordo com o estabelecido nas Ordenações Filipinas, o juíz deveria ser o vereador mais velho. O juíz ordinário exercia a função judicial sendo-lhe apresentados, em primeira instância, todos os factos ocorridos na área do Concelho. Quanto à jurisdição cível, tinha alçada, sem apelo nem agravo, até 1000 reis nos bens móveis e 400 reis nos bens de raíz, em concelhos com mais de 200 vizinhos, nos outros a alçada para os bens móveis ia somente até aos 600 reis, o que devia ser o caso da Póvoa, por essa altura. No que diz respeito à jurisdição crime, julgava os casos de injúrias verbais, almoçataria e furto de escravos, também sem apelo nem agravo, sendo a alçada de 6000 reis para os primeiros casos e de 400 reis para o furto de escravos. Não há notícia de escravos, nesta época, na Póvoa, pelo que a acção de José Carrilho Pereira se limitaria aos pequenos conflitos, naturais entre habitantes da mesma terra.
Ao contrário do Juíz de Fora, nomeado pelo rei, que não podia execer na própria terra, nem nela ter quaisquer laços de parentesco, o Juíz Ordinário era um habitante da terra e, supõe-se que com prestígio, pois exercia o cargo por eleição. Como símbolo da sua autoridade o Juiz Ordinário possuía uma vara que, de acordo com o Código Filipino, devia empunhar sempre que andasse pela vila, em serviço a pé ou a cavalo, sob pena de uma multa de 500 reis.
Como membro do Concelho da vila, o juíz acabava também por participar nas acções de defesa dos direitos dos moradores do Concelho e, é nesse papel que vamos encontrar o Juíz Carrilho Pereira em 1821. Em 17 de Junho desse ano assina a seguinte petição às Cortes:
«Senhor,
O Soberano e Augusto Congresso da Nação que tão disveladamente tem solicitado os interesses d’ella e que tão sobejas provas tem dado de zelo e amor patriotico nas sabias decizoens que, admirando o mundo, vão pôr Portugal ao rival das naçoens mais illustradas, fazendo-lhe recuperar o lugar que o espirito do despotismo lhe havia feito perder, não pode deixar de lançar suas vistas de justiça e beneficencia sobre os infelizes habitantes d’esta villa que tiverão a disgraça de pertencer em sorte a hum donatario que por si e seus rendeiros não tem cessado de opprimilos. Este povo que vive de lavouras e criaçoens acha se reduzido a hum estado de mizeria de que só a mão poderosa de Vossa Magestade pode livralo.
Não contente o Donatario Marquez de Loulé de receber desta villa os muitos direitos que o foral lhe concede, elle os tem feito estender a medida da sua ambição, valendo-se da ignorancia e rusticidade deste povo. Que importa que o foral de que juntão copia authentica só permetta ao Donatario receber na Miada aos de fora renda das ervagens se o marquez a tem constantemente recebido dos mesmos da terra? Que importa que elles tenhão o direito de apascentar seus gados e cortar na defeza do Soveral em todo o tempo (porque isto só he prohibido aos de Castelo de Vide, nos tres mezes indicados no mesmo foral), se elles não gozão de similhante prerrogativa, são considerados como os de fora e pagão a lande se a precizão? De modo que a unica regalia que este povo conservava, de preferir aos de fora na compra da lande para conservação das criaçoens a que particularmente deve este destricto a sua subsistencia, foi acabada de annaquilar pelo actual rendeiro Manoel de São Thiago que, arrendando parte de montado aos de fora do termo e utilizando-se elle da outra parte, pôz os disgraçados criadores na triste necessidade de venderem seus porcos. Que importa que o Carvalho seja baldio para o povo se o mesmo rendeiro principia a espolialos da sua regalia?
Parece impossivel que este povo tenha athe agora vivido tão alucinado e ignorante dos seus deveres para com o donatario e tenha sido para com elle tão condescendente! Mas senhor, sendo este povo todo agricola, onde he rarissima a pessoa que saiba ler e onde ninguem possue os mais leves conhecimentos, facilmente se sugeita e he conduzido pelos rendeiros e feitores do Marquez, homens ardilosos e que só tem em vista o locupletarem-se e a seu amo. Hum povo composto de gente desta ordem, e em geral muito pobre, não podia disputar com o Marquez de Loulé, gentil homem da Camera e valido do Soberano, ainda que elle tivesse bem conhecido a extensão dos direitos do seu donatario, principalmente sendo como he dos rendeiros ou feitores a distribuição das terras em que devem lavrar porque todo o que ouzasse alçar a voz ficaria sem terras e sem ellas que faria? Quantas vezes os rendeiros fazem calar com ameaças na distribuição das terras qualquer que se oppoe, ainda que justamente, a suas pertenções ou extorssões?
Senhor, o povo desta villa tem vivido n’hua rigorosa escravidão: seus moradores pagão o 6º do pão que lavrão, e o 8º de linho e vinho; pagão ervagens sem as deverem; não são mantidos nas regalias que lhes permitte o foral, e são opprimidos por todos os modos.
A vista do que fica exposto e do foral, pertende este povo que Vossa Magestade lhe declare se em execução do decreto sobre direitos banaes deve ou não continuar a pagar os 3 alqueires de trigo que lhe manda o foral; se deve ser obrigado ao pagamento das ervagens na Meada, se deve ser conservado no uzo e posse de ser baldio o Carvalhal e que a distribuição das terras aos lavradores seja feita pela Camera que milhor do que ninguem conhece a necessidade de cada hum e a extensão de suas lavouras e finalmente se devem utilizar-se da defeza do Soveral. »
Pelo enunciado de queixas contido na petição percebe-se que os lavradores da Póvoa tinham razões de sobra para terem participado na assuada e que tal movimentação serviu de suporte ás reivindicações que decidiram apresentar ás Cortes.
A resposta à petição só chegou a 28 de Fevereiro de 1822, assinada por dois membros da Assembleia, com a indicação de que esta não considerava que o assunto devesse ser tratado pelas Cortes. Apesar desta resposta a Câmara da Póvoa enviou em Setembro desse ano uma carta de felicitações às Cortes e que ficou registada em acta na sessão de 28 de Setembro de 1822.
A 7 de Outubro de 1822, aproveitando a publicação da Lei dos Forais de 3 de Junho desse ano, a Câmara da Póvoa volta a enviar uma petição às Cortes centrada em dois pontos:
a) pagamento da renda de ervagens na Meada
b) pagamento de três alqueires de trigo, que ou devia ser abolido ou reduzido a metade, consoante a interpretação que fosse dada a esse direito do donatário.
A resposta foi ainda mais lacónica do que a anterior, reduzida a uma nota à margem, assinada por um tal Passanha.
Gostaríamos de saber mais sobre este juíz José Carrilho Pereira que, parece, seria um dos rarissímos povoenses que, na altura, saberiam ler e escrever. Infelizmente não é poosível adiantar mais sobre a sua personalidade a não ser a capacidade de liderança da comunidade que se deduz do facto de ter sido eleito para o cargo que exerceu e pela iniciativa de defesa dos direitos dos lavradores da Póvoa.
Quanto ao donatário, Marquêz de Loulé, de nome Agostinho Domingos de Mendonça, sabemos que entrou no senhorio de Póvoa e Meadas por herança de seu pai, José Maria de Mendonça e Moura, 7º Conde de Vale de Reis. Em 1801 combateu ao lado das tropas francesas e espanholas que invadiram Portugal, ao seviço de Napoleão. Por isso, foi preso e condenado à morte em 1811, no entanto, conseguiu fugir para o Brasil, acabando por obter o perdão em 1818, no Rio de Janeiro. Regressou a Portugal e acabou por ser assassinado em Salvaterra de Magos em 1824.
Como se pode constatar pelo teor das petições dos lavradores, o senhorio e o seu rendeiro Manuel de Santiago, visavam alcançar dois objectivos essenciais: a concentração da posse das terras e o aumento das rendas em dinheiro, pois que, à época, a simples posse da terra começava a não ser suficiente para a manutenção do estatuto de nobreza, cada vez mais o dinheiro se tornava fundamental. Para atingir os seus objectivos tomaram as seguintes medidas atentórias dos direitos dos lavradores: aumentaram de forma ilícita as rendas em dinheiro; expulsaram os camponeses que detinham direitos de exploração de determinadas terras para os poder substituir por outros que, sem direitos, pudessem ser obrigados a pagar rendas e apropriaram-se indevidamente de terras que constituíam baldios.
Apesar da derrota, inevitável, dada a desproporção de forças dos contendores e a indiferença do poder, há que realçar a coragem dos lavradores da Póvoa, liderados por José Carrilho Pereira, que ousaram enfrentar os seus opressores e puseram a nu a hipocrisia do poder, que se afirmava liberal e revolucionário. A luta dos lavradores da Póvoa acabou por trazer uma pequena mudança nas suas relações com os rendeiros. Na petição é claro que o principal visado pelas queixas é Manuel de Santiago, enquanto que, na portaria, se indica que os rendeiros são Francisco Nunes Vizeu e Companhia. Este último terá sub-arrendado as terras a Manuel de Santiago e esta sucessão de gente a pretender retirar rendimentos do trabalho dos lavradores: Marquês de Loulé, Francisco Nunes Vizeu e Manuel de Santiago é, em parte, responsável pelos abusos do rendeiro que se terão tornado um problema e que terão levado Francisco Nunes Vizeu a desfazer a sociedade com Manuel de Santiago de que deu conta em 21 de Outubro de 1823 em anúncio publicado na Gazeta de Lisboa.
A forma como o novo regime liberal saído da Revolução de 1820 encarou a questão agrária, afrontando simultãneamente os detentores da terra e os camponeses, visando criar as condições para um sistema de exploração agrícola moderno e liberto das peias dos morgadios, dos forais, dos pastos comuns, etc., acabaria por empurrar a grande maioria do mundo rural para uma posição reacionária à qual se juntaria também o clero e que apenas esperava quem se apresentasse como paladino da luta em defesa do Trono, do Altar e da Nação. D. Miguel, qual Arcanjo do mesmo nome, qual novo D. Sebastião, encarna o papel de redentor da Pátria e em 27 de Maio de 1823 encabeça a revolta absolutista conhecida por Vilafrancada, pois partiu de Vila Franca de Xira. A região de Portalegre aderiu em massa à causa de D. Miguel que, entre 2 e 4 de Junho de 1823 foi aclamado rei no Gavião, Nisa, Montalvão, Póvoa, Meadas, Castelo de Vide, Arez, Vila Flor, Alpalhão, Arronches, Elvas e Portalegre. Apenas nesta cidade terá havido alguma oposição por parte dos constitucionalistas liberais. A revolta não foi totalmente vitoriosa porque D. João VI decidiu recuperar a iniciativa e restaurou o absolutismo, mas mais moderado do que o que desejava D. Miguel e sua mãe D. Carlota Joaquina. Porém, menos de um ano depois, em 30 de Abrl de 1824, o partido de D. Miguel e D. Carlota iniciam nova revolta, conhecida por Abrilada, com vista ao derrube de D. João VI e à implantação total do regime absolutista. D. Miguel foi mais uma vez derrotado e exilado em Viena, mas haveria de voltar em 1828 e fazer-se aclamar rei. Estalou, então uma guerra civil que só terminaria em 1834 com a vitória definitiva do Liberalismo.
No decurso da guerra o lado absolutista utilizou todos os meios para obter formas de financiamento para o esforço de guerra, desde requisições de animais, especialmente cavalos, requisições de víveres, impostos especiais e donativos mais ou menos voluntários. Os povoenses não perdoaram a forma como haviam sido ignorados pelo regime vintista e apoiaram abertamente o miguelismo, contribuindo com donativos para o exército. Os primeiros de que há conhecimento foram, em 1829, António Correia Faustino que ofereceu um recibo de trinta e seis mil reis, que lhe eram devidos por uma égua, vendida em 1809 para o exécito e António Barreiros, o Velho, que ofereceu três recibos de valores que lhe eram devidos por vários géneros fornecidos ao exército em 1820 e 1827. No ano seguinte aparecem o Capitão João Marcelino com 12$000 reis e Manoel Rodrigues Miguel com 1$000 reis que, em conjunto com outros, totalizaram a quantia de 39$440 reis a que há a juntar 70 alqueires de trigo. Alguns anos mais tarde o apoio dos povoenses é ainda mais evidente e substtancial. No início do ano de 1832 há uma campanha para angariação de donativos entre os moradores da Póvoa, organizada pelo Vigário da Vara João Carrilho Semedo que doou 2.400 reis tendo os restantes contribuintes entregue a quantia de 3.140 reis. Em Setembro do mesmo ano há nova campanha de angariação de donativos que rendeu 58 alqueires de trigo, 23 alqueires de centeio, 12 alqueires de cevada e ainda um vale com a importãncia de 25,5 alqueires de trigo e 24 de centeio. Da lista de contribuintes consta José Carrilho Pereira, sem mais indicação do que a oferta de 1 alqueire de tigo e 1 de cevada. Em 1833 aparece, de novo, o Vigário João Carrilho Semedo com o donativo de 10 panos de linho da terra, o Capitão de Ordenanças João Marcello da Costa com 6 panos de estopa e João Domingos com 11 e ainda José Carrilho Faustino com uma manta ou um cobertor.
Para que conste a Gente da nossa Terra que apoiou então o regresso de D. Miguel foi, para além dos já nomeados, a seguinte:
Jorge Rosa