Dionísio da Piedade Cebola (3.Ago.1883
- 28.Jan.1966)
Durante a primeira metade do século
XX, Dionísio da Piedade Cebola foi uma das figuras mais populares,
senão mesmo carismática, da vila de Nisa.
Casado com Emília da Cruz Bicho, de
quem teve dois filhos, José Dinis e João Augusto, muito cedo
enviuvou; voltou a casar com Maria José Zacarias.
De forte compleição física, de gesto
aberto aos cumprimentos, altruísta por natureza, foi uma pessoa
virada para a amizade e para a alegria.
A Troupe Jazz “ Os Fixes “ foi a
bandeira comunicativa do seu perfil psicológico, com a sua
inseparável viola – banjo.
Vizinho da Igreja Matriz, foi seu
sacristão. Lembrava-se de usar uma opa encarnada e, na Quaresma, uma
roxa, de ajudar à missa em latim com seus tempos de genuflexões e
de mudar o missal do lado da Epístola para o lado do Evangelho.
Possuía uma especial acuidade auditiva e distinguia o significado do
toque dos sinos: matinas, missa, casamento, baptizado, anjinho,
enterro, sinal de ano e trindades. Os quatro sinos tinham nome;
lembro o Castelhano e a Campainha, virados a nascente. À Elevação,
tinha que haver sincronismo entre o tinir da campainha, no altar, e o
toque dos sinos, na torre. Nos dias em que sobressaía o som da
Campainha, era sinal de anjinho. Logo apareciam expostos os caixotes
de palmitos a cinco tostões ou, só a rosinha branca, a dois
tostões, à porta das lojas dos senhores João Mendes e João Rosa,
no Largo da Porta da Vila, nº 15 e 18, respectivamente.
Meu avô tinha a sua oficina de
sapateiro na casa onde vivia, na Rua Direita, nº 12. Na loja
trabalhavam oficiais, pagos à semana, e aprendizes que recebiam
gorjeta pela entrega do calçado ao domicílio ou em dia festivo. O
estatuto de oficial só se atingia com cinco anos de aprendiz. A
disposição dos lugares na loja obedecia a certas regras. Havia
hierarquia. À roda de pequenas mesas, sentava-se o mestre frente aos
oficiais e de permeio os aprendizes. O mestre tinha o privilégio do
melhor lugar, junto à janela, com o fim de não escapar algum
bom-dia ou boa-tarde, a transeunte da Rua Direita.
Nesse tempo, esta zona urbana era a
mais frequentada de Nisa, quer pelas inúmeras oficinas de sapateiro
e de carpinteiro, tabernas e demais lojas, quer sobretudo pela
afluência de pessoas aos serviços, tais como, a Câmara e as
Finanças e suas Tesourarias, as sessões no Tribunal, a Igreja e o
Hospital da Misericórdia, o Asilo de Nossa Senhora da Graça e ainda
a Fonte da Praça, onde se bebia a cristalina água da Galiana ou se
enchiam os cântaros pedrados, por vezes, com formação de bicha à
sombra do frondoso plátano.
Das conversas com meu avô resultava,
com frequência, o freguês ou o amigo serem convidados a visitar o
seu mundo de coelhos, de pombos e de rolas.
Começava-se pela coelheira.
Acabara de apalpar a barriga da coelha
preta e contara cinco coelhinhos. Era altura de arranjar uma loura de
um caixote de barras de sabão, porque a gestação do mês estava no
fim, e tinha de ir apanhar um punhado de leitugas ao Chão da Fonte
da Aluada.
Seguia-se o pombal.
A pomba põe o primeiro ovo das quatro
para as cinco da tarde e dois dias depois, passado o meio-dia, põe o
segundo. A incubação dura cerca de dezoito dias. Cada postura pode
gerar dois machos ou duas fêmeas. É casal quando os pelachos estão
posicionados, no ninho, em sentidos opostos.
No pombal, o “ Fabri “ era a
vedeta; este pombo chegou a ser largado de Coimbra, com escritos numa
mortalha de cigarro, enrolada à anilha da Columbófila de Nisa de
que meu avô era sócio fundador.
O pombal tinha o “ esqueleto “ que
era uma gaiola montada no telhado para evitar a entrada de gatos e
para apanhar pombos da vizinhança, ao chamariz de grãos de milho
lançados a jeito. O que nunca tinha conseguido apanhar, dizia,
tinham sido pombos-cambalhotas que passavam o dia inteirinho no cimo
da torre (a que não tem sinos). Esta raça de pombos era única em
Nisa e pertencia ao sr. Júlio Frade, morador paredes-meias com a
Torre do Relógio.
Subia-se à varanda.
Neste patamar da visita, havia três
gaiolas de casais de rolas penduradas na parede e uma gaiola grande,
ao canto, onde coabitavam rolas mansas e bravas, pombos bravos com
asas derreadas, vindos das caças de espera do Mato da Póvoa e do
Azinhal, e um coelhinho bravo, apanhado à mão nuns juncos à Fonte
da Cruz.
Como epílogo, por debaixo da latada,
uns papa-ratos ainda quentinhos serviam de lastro a uns copinhos de
vinho branco do sr. Sambado que tinha a adega na casa frente à
Igreja Matriz.
O gosto de meu avô pelos animais já
vinha de longa data.
Há cerca de cem anos, ainda havia um
chabouco a poente do edifício da escola primária. Contava meu avô
que tinha uns patos que ali passavam muito tempo e que iam e vinham
para a sua capoeira.
Então comparava o que cinquenta anos
depois acontecia com um rolo que tinha criado, resultante do
cruzamento de um rolo bravo com uma rola dita da Índia (a fêmea
brava não procria em cativeiro) e que ia às areinhas ao Jardim
Municipal, sob a vigia do Ti Luís (Jardineiro). Este rolo chegava a
ser largado do recinto de Nossa Senhora da Graça. O pobre do rolo
acabou nas garras de um gato, ao entrar na gaiola da varanda.
Durante anos, as freguesias tinham um
regedor cujas atribuições do cargo eram, por vezes, postas à
prova. Contava meu avô, regedor da freguesia de Nossa Senhora da
Graça que, um dia, em final de romaria de Nossa Senhora dos
Prazeres, dois festeiros envolveram-se em grande sessão de
pancadaria. O regedor da freguesia do Espírito Santo deu voz de
prisão a um deles, mas constou logo que o dito preso pertencia à
freguesia de Nossa Senhora da Graça. Foi o suficiente para meu avô
intervir e dar ordem de soltura ao aprisionado. Restou-me saber se,
no final da discussão, não teriam ido os quatro beber um copo na
barraca mais próxima.
Em casa de meu avô, às
segundas-feiras, aguardava-se a chegada do correio com os “Brados
do Alentejo “, jornal estremocense que veiculava notícias do seu
amigo Dr. António Garção, médico municipal, residente no Cano
(Sousel).
Certo ano, o Jazz firmara contrato em
ir abrilhantar os bailes de Carnaval ao Cano. O problema com os
transportes era difícil de resolver por ser Domingo Gordo. Então,
meu avô manda avançar o grupo para a paragem das camionetas e, num
ápice, antes das nove horas, sai Rua Direita abaixo, bebe um copo de
cinco no Henriques Esteves e, direito ao Dafundo, no Adelino Rascão,
ainda o espera outro copo, agora acompanhado de uma sandes de atum
(especialidade da casa). Já acelerado na Estrada das Amoreiras,
passa à Curva da Morte e caminha até ao Alto de Palhais (a 2,5km)
onde aguarda a carreira. Pouco espera. Chega a típica camioneta de
cores encarnada e branca e, ao sinal de meu avô, pára. Ao entrar,
logo abraça o Laurentino, o cobrador, a quem promete um copo em
Fronteira (paragem para o almoço) e toca a ocupar um banco de dois
lugares com a viola e outro com o estojo. A lotação estava
assegurada. Chegados a Nisa, era uma chusma de gente para embarcar. O
Jazz seguiu viagem e várias pessoas ficaram em terra.
A paragem das camionetas da Empresa
Martins, concessionária das ligações Castelo Branco – Évora,
situava-se em frente da actual Estação dos C.T.T., com horários às
dez e duas e meia.
Frente a um programa de festas, meu avô
comentava:
Às 8 horas – Alvorada pela Banda
Municipal de Nisa (“É prá gente”)
Às 10 horas - Sessão de boas-vindas
nos Paços do Concelho (“É p´ra eles”)
Às 11 horas – Missa solene na Igreja
Matriz (“ É p´ra elas”)
Às 13 horas – Almoço (“É p´ra
eles)
Às 16 horas – Procissão com o andor
de Nossa Senhora da Graça (“ É p´ra gente”)
Que genuíno humor!!!
Arthur Odorico da Costa Raposo, chefe
da Tipografia Borges Henrique que funcionou no local onde hoje é a
garagem do prédio nº 9 da Praça da República, editou um opúsculo,
em 1 de Dezembro de 1951 – Os Casamentos em Nisa – do qual
transcrevo:“Entre as pessoas
presentes, há sempre alguém que se salienta mais, e, nesses casos
está um sapateiro por ofício, músico nas horas vagas, excelente
pessoa, estimadíssimo por todos, o qual atrai sobre si as vistas dos
outros convivas, já pela sua apresentação alegre e folgasã, já
pelas graças ditas a tempo e a propósito, já e ainda, pela sua
movimentada actividade – transportando peças de carne, mexendo uma
ou outra caçoula, onde a comida ferve, quer atiçando o lume, desta
ou daquela fornalha, dando palmadinhas amigáveis aos presentes,
saudando ruidosamente os amigos que chegam; numa palavra: é o grande
– direi mesmo – o indispensável e exímio fomentador do riso, da
alegria, em festas desta natureza, é ele, incontestavelmente, só
por si, meia festa!” (pág. 23)
É ele, meu avô, Dionísio da Piedade
Cebola.
Dionísio Cebola in "Jornal de Nisa" nº 246 - 2 Janeiro 2008